«(…) Eneias suspirou e beijou
encarecidamente a testa alva da esposa. Quem se ocuparia dos assuntos dos romanos
em Antioquia, faria a escrita e supervisionaria os capatazes dos escravos? Ah,
estes romanos gananciosos e aproveitadores! Roma é um abismo onde
silenciosamente se afunda toda a riqueza e trabalho do mundo, um abismo de onde
não discende, nem nunca ascendeu, qualquer tipo de música. Íris, cordialmente,
absteve-se de lembrar ao marido a existência de Virgí1io. Eneias costumava
desdenhá-lo em relação a Homero. Eneias sentia-se ofendido por o patrão ser
apenas um rude tribuno e um augustal. Era verdade que muitos dos tribunos romanos
eram augustais, mas tal não era o caso de Diodoro, que odiava os patrícios e
elevara Cincinato à categoria de herói. Diodoro tinha uma educação considerável
e um intelecto a condizer, descendendo de uma sólida e virtuosa família de
soldados, mas fingia comungar do desdém que os soldados sempre professam pelos
homens dados aos assuntos do espírito.
Abraçava no seu peito as virtudes
arcaicas e simulava ignorância em relação ao que sabia, usando as palavras
rudes e simples dos soldados para quem os livros são coisas desprezíveis. De
celta forma, Diodoro demonstrava fartas afectações quanto Eneias. Ambos eram
fraudes, pensava Íris tristemente. Mas eram também fraudes dignas de compaixão.
Pouco importava que Eneias mostrasse complacência para com o soldado cujo pai o
libertara, ou que Diodoro abusasse deliberadamente da gramática e exibisse
modos grosseiros. O pai de Diodoro, um homem digno com qualidades nobres, comprara
o jovem Eneias a um conhecido famoso pela sua crueldade extrema para com os
escravos, uma crueldade que se tornara infame até entre aquele povo cínico e
insensível. Dizia-se que não possuía um único escravo que não tivesse
cicatrizes: dos trabalhadores dos campos, vinhedos e olivais às mais jovens
escravas de sua casa. Apesar das leis existentes, não se coibia de matar
impiedosamente e a seu bel-prazer qualquer escravo que lhe desagradasse, tendo
concebido formas de tortura e de morte que lhe proporcionavam enorme deleite.
Augustal oriundo de famílias orgulhosas, embora decadentes, e de imenso poder e
riqueza, era também senador, e dizia-se que o próprio César o temia.
Apenas um homem em Roma se
atrevia a menosprezá-lo publicamente: o virtuoso tribuno Prisco, pai de
Diodoro, amado pelas multidões de Roma que, embora tão depravadas e corruptas
como os seus amos, honravam a sua integridade e as suas qualidades militares.
As multidões admiravam até a sua bondade e justiça para com os escravos, algo
paradoxal num povo para quem um escravo era menos que um animal de quatro
patas. Eneias, o escravo grego, trabalhara nas terras do senador e ninguém sabia
ao certo como Prisco o tinha adquirido, excepto Eneias, que nunca falava do
assunto. Mas Prisco comprara o jovem ferido e alquebrado, trouxera-o para sua
casa, chamara o médico para que fosse tratado e atribuíra-lhe funções no seu
lar, apenas exigindo obediência.
Todos devemos obediência, dissera
austeramente Prisco ao seu escravo. Eu obedeço aos deuses e às leis dos meus
pais. Há orgulho numa tal sujeição, uma vez que é voluntária e exigida a todos
os homens honrados. Um homem sem disciplina é um homem sem alma. Eneias era
iletrado, mas era rápido, respeitoso e possuía uma mente sagaz e ordeira.
Prisco, que acreditava que todos os homens, até mesmo os escravos, deviam
desenvolver plenamente o seu potencial, permitira que Eneias se sentasse num
canto do quarto onde o seu filho recebia as lições. Num espaço de tempo
extraordinariamente curto Eneias alcançara Diodoro. A sua memória era prodigiosa
e passado pouco tempo, Eneias, sob as ordens de Prisco sentava-se já num canto
da mesa onde Diodoro estudava com o seu tutor». In Taylor Caldwell, 1959, Médico
de Homens e de Almas, tradução de Margarida Luzia, A Esfera dos Livros, 2009,
ISBN 978-989-626-153-5.
Cortesia de EsferaLivros/JDACT