Paris, princípios de Agosto de 1977
«(…) São duas da manhã e a inquietação teima em persistir nas minhas
vísceras entupindo-me as veias e a cabeça, são duas da manhã e arrasto-me, são
duas da manhã e o vazio é imenso dentro de mim e à minha volta, é um vazio
feito de perdas e de ausências, de coisas que não tenho e que me fazem falta. São
duas da manhã de uma noite de Agosto serena e envolvente, e que me deixa
perplexa, porque, e em princípio, me deveria sentir contente e repleta, sou a
Callas, digo em voz alta, e isso me deveria bastar, sou a Callas, repito sem cessar
para mim mesma, sabendo que esta afirmação não é porém completamente exacta,
porque, se eu ainda fosse a Callas, estaria a cantar num palco uma ópera, a
minha voz seria capaz de tomar corpo e forma veiculando os sons que estão na
minha garganta, e na minha cabeça, a minha voz adquiriria, como antigamente,
consistências ora espessas, ora rarefeitas, atravessaria a música com as suas
vibrações e as suas ressonâncias, seguiria adiante atravessando as salas na
esteira da música, chegaria às pessoas que a ela reagem e dela se alimentam.
Quero desesperadamente agarrá-la porque me habituei a vê-la como a parte de mim
que de facto importa, mas a verdade é que me falta, perdi-a a cada dia sem me
dar conta. Eu era a minha voz e a pouco e pouco vi-me dela despojada e fiquei morta.
Porque, se eu era a minha voz, como continuar viva sem ela, como continuar a sentir-me
intacta? Porque os anos passam e eu sinto que se trata de uma perda irrevogável,
nada já me poderá trazer de volta a sua precisão e as suas proezas mirabolantes
e acrobáticas, hoje a minha voz, tal como era, não passa de uma lembrança que as
mais das vezes me escapa, e então ouço as minhas gravações e trago-a de volta, materializo-a
junto de mim, ouço-a vezes sem conta, e sei que fui eu que lhe dei forma e matéria,
e isso me tranquiliza e me serena, para logo a seguir me deixar presa da maior angústia,
a consciência aguda de que nunca mais serei ela, que nela tudo me escapa, que tenho
inveja dela, que a olho como se de mim estivesse fora, e fizesse parte de outra
pessoa, que não eu própria.
É Agosto em Paris e eu estou
exausta, eu que lutei sempre com todas as minhas forças. É Agosto em Paris e eu
quereria esquecer que a voz que era a minha se gastou com o tempo, e perante a minha
impotência. Bruna e Ferruccio dormem. Eu mantenho-me numa vigília forçada e inútil,
há uma inquietação dentro de mim que me consome as entranhas e me mantém desperta,
é como se a dor que sinto não permitisse que o sono me trouxesse o esquecimento
das coisas que me acontecem. Tenho permanentemente diante dos meus olhos o que fui
e já não sou, e o nada que me resta. Bruna e Ferruccio são-me devotados e amparam-me,
mas às outras pessoas receio-as e evito-as. Como vou eu apresentar-me perante elas?
Não tenho ilusões. Procuram em mim a Callas que fui e não a pessoa que eu sou agora.
Prestam homenagem ao que represento. E acabo por chegar à conclusão que é como se
eu fosse, em vida, a representante póstuma de uma Callas entretanto morta.
Aflige-me a lonjura das estepes, o afastamento progressivo das pessoas que
me estavam próximas, a desertificação das coisas que me acontecem, as salas dos
teatros para mim dantes abertas, o declínio de uma voz que hoje me escapa e em que
me revia intacta, e que estava dentro da minha cabeça e da minha garganta e, não
sei como, comecei a perdê-la nos bastidores dos vários teatros de ópera, também
nas salas repletas, e até nas variadas encostas dos palácios, e das festas. Aflige-me
esta perca mais do que qualquer outra, embora saiba que esta perca está inscrita
noutra, mais derradeira e mais intrínseca, de me ter sentido perdida desde a minha
primeira hora, sem apelo, nem agravo, nem redenção de qualquer espécie. Há percas
que não nos deixam nunca, antes nos perseguem pela vida fora, acabando por atropelar-nos
em repetida cadência, deixando-nos estatelados no passeio público, ou adentro das
nossas portas. Há percas, feridas, brechas, coisas que nos faltam e que não tivemos
nunca, coisas que deveríamos ter tido porque são essenciais, e a sua falta nos deixa
de cócoras, e lentamente mata. Coisas como raízes que se agarrem ao solo e nele
se fixem, âncoras que nos permitam a mobilidade no elemento líquido, pontos de referência
que nos orientem, laços que nos estabeleçam as pontes e os contactos e nos
envolvam numa mística». In Rita Cerdeiros, Maria Callas, De Lúcia a
Violeta, Editora Pergaminho, Lisboa, 1998, ISBN 972-711-139-4.
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