Um irmão mal sintonizado
«(…) O rei esforçava-se, a todos procurava agradar, dividia o que
podia, protegia, mas tudo isso não ia tão longe quanto os nobres gostariam que
fosse. Ingénuo, tudo indica, esquecia-se que eles eram insaciáveis, ávidos de bens
e sibilinos nas intrigas que fomentavam.
Tudo tenho feito para no
essencial satisfazer os fidalgos do meu sangue, rememorava o rei, todavia, não
vou, não quero, é contra os princípios da humanidade deixar que uns poucos fiquem
mais ricos para que os outros, mais humildes, empobreçam. Sigo os exemplos que
me deram, e é por isso que não esqueço a recomendação que a minha muito saudosa
e amada mãe me fez, em vésperas da sua morte, rogando-me que protegesse e
defendesse os povos. No entanto, fico apreensivo. O que será da coroa sem os
seus melhores fidalgos, aqueles que em momentos difíceis interferem na vida do
reino, lhe dão prestígio, asseguram a independência, prestam ajuda, aconselham
o rei quando deles precisa.
Enquanto se mantinha
submerso nos pensamentos que lhe ocorriam ligeiros, distantes mas límpidos, o
passado em retrospectiva, Duarte retirava das suas lembranças argumentos para melhor
fazer face à constrangedora situação que o irmão lhe criara. Lembrou-se, de
entre o turbilhão de acontecimentos que o marcaram pela vida fora, da imagem do
irmão Pedro diante do pai, solicitando-lhe dispensa para procurar no
estrangeiro o reconhecimento que em Portugal lhe parecia vedado. Agora,
volvidos mais de dez anos, é o irmão mais novo que o repta no mesmo sentido. De
uma coisa o rei não duvidava. Sendo embora uma situação semelhante à de Pedro,
a iniciativa de Fernando não teria acolhimento. Estava fora de questão
autorizar-lhe a partida, não iria ceder ao pedido, simplesmente porque não era
João I, nem Fernando era Pedro. Este, quando abalou, tinha razão, era um nobre
com total autonomia e sobretudo definição nos propósitos, ao contrário do irmão
mais novo, sem causa justificada, muito dependente da coroa e sem esclarecidos argumentos.
O infante Fernando não quer ficar
O que fazer agora? Duarte
I sabia que não aceitaria o pedido do irmão, mas não sabia como dizer-lhe, até que
voltou aos conselhos que lhe deu Pedro: Adia,
adia até teres soluções. Reconfortado pelo alvitre, na posse de uma nova
forca, o rei encarou o irmão com determinação: Dizeis-me então que tendes a ambição
de vos pordes ao serviço do rei de Inglaterra. Sendo assim, pergunto-vos: o serviço
que quereis prestar ao nosso primo Henrique, que lá governa, é mais importante
do que aquele que deveis a vosso irmão? Já agora, esclarece-me esta dúvida. tendes
vós a exacta medida da importância da vossa presença para a respeitabilidade da
coroa? Posto a pensar, o infante Fernando fez apelo ao mais profundo do seu ser
para manter um discurso crítico, acusador, sem todavia se exceder nem nas recriminações
nem na tonalidade da voz. Sei que sou alguma coisa, irmão, recomeçou o infante Fernando,
mas quero ser mais. Quero ter mais reconhecimento, mais poder, ombrear convosco
naquilo em que me reconheceis inferior.
Agora mesmo chegou o tempo de esclarecer dúvidas: serei um grande deste
reino? Não estou assim tão certo dessa condição. Tudo o que me foi concedido parece
ter a importância das sobras, o que restou do que foi dado aos outros. Se é certo
que me atribuíste recentemente o Mestrado de Avis, também é verdade que para
ser honesto terei de o dividir com a Igreja, por serem bens que também lhe
pertence. Eu disto não reclamo, acho justo, pois sabeis bem que por nada cobiçaria
a parte da instituição sagrada. Mas isto é quase nada. Quero ser mais, tão grande
que possa estar no mesmo patamar dos meus ilustríssimos irmãos, a quem admiro, estimo
e que vejo prosperar com tudo aquilo que lhes foi acrescentado. O rei lamentava
e cada vez mais se convencia de que aquele irmão mal alinhado se tinha
transformado num ser desconhecido para si. A custo, refez a argumentação na ilusão
de não alimentar o desânimo do irmão e mais do que tudo evitar manchar o seu relacionamento
com ele». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos
Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-724-067-6.
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