domingo, 9 de agosto de 2015

A Rapariga que Roubava Livros. Markus Zusak. «Elas deram-se as mãos. Foi solto um último e encharcado adeus, e depois viraram-se e abandonaram o cemitério, olhando várias vezes para trás. Quanto a mim, permaneci por uns momentos. Acenei. Ninguém correspondeu ao meu aceno»

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Coragem nascida das palavras
«(…) Numa questão de segundos a neve gretou-lhe a pele. O sangue gelado estalou-lhe nas mãos. Algures, no meio de toda a neve, ela conseguia ver o seu coração despedaçado, partido em dois. Cada uma das metades refulgia, e batia sob toda aquela brancura. Ela apenas se apercebeu de que a mãe voltara para a ir buscar ao sentir uma mão ossuda no ombro. Estava a ser arrastada dali. Um grito quente encheu-lhe a garganta. Uma pequena imagem, talvez uns vinte metros adiante; terminado o arrastar, a mãe e a rapariga pararam e respiraram. Havia qualquer coisa preta e rectangular alojada na neve. Só a rapariga a viu. Curvou-se e apanhou-a, e segurou-a firmemente entre os dedos. O livro tinha letras prateadas.
Elas deram-se as mãos. Foi solto um último e encharcado adeus, e depois viraram-se e abandonaram o cemitério, olhando várias vezes para trás. Quanto a mim, permaneci por uns momentos. Acenei. Ninguém correspondeu ao meu aceno. Mãe e filha saíram do cemitério e dirigiram-se para o comboio seguinte em direcção a Munique. Eram ambas escanzeladas e pálidas. Ambas tinham os lábios gretados. Liesel deu por isso na janela suja e enevoada do comboio ao embarcarem, pouco antes do meio-dia. Segundo as palavras escritas pela própria rapariga que roubava livros, a viagem prosseguiu como tudo tinha acontecido. Quando o comboio entrou na Bahnhof de Munique, os passageiros deslizaram para fora como de um embrulho rasgado. Havia pessoas de todas as condições mas, entre elas, os pobres eram os mais facilmente reconhecíveis. Os necessitados procuram sempre manter-se em movimento, como se a deslocação pudesse ajudar. Ignoram a realidade de que uma nova versão do mesmo velho problema os espera no final da viagem, o parente que receiam beijar.
Penso que a mãe dela sabia isso muito bem. Não vinha entregar a filha aos escalões superiores de Munique, mas fora aparentemente encontrado um lar de acolhimento e, quanto mais não fosse, a nova família podia pelo menos alimentar a rapariga e o rapaz um bocado melhor, e proporcionar-lhes a devida educação. O rapaz. Liesel tinha a certeza de que a mãe transportava a memória dele a tiracolo. Deixou-o cair. Viu-lhe os pés e as pernas e o corpo abaterem-se sobre a plataforma. Como podia aquela mulher caminhar? Como podia mover-se? Isto é o género de coisas que eu nunca saberei, nem compreenderei aquilo de que os humanos são capazes. Ela apanhou-o e continuou a andar, com a rapariga agora colada a seu lado.
Houve encontros com as autoridades, e perguntas acerca de atrasos e do rapaz levantaram as suas cabeças vulneráveis. Liesel permaneceu no canto do pequeno escritório poeirento, enquanto a mãe se sentava, de pensamentos cerrados, numa cadeira muito dura. Houve o caos da despedida. Foi uma despedida molhada, com a cara da rapariga enterrada nas pregas de lã do casaco puído da mãe. Uma vez mais tivera de ser arrastada. A certa distância dos subúrbios de Munique havia uma cidade chamada Molching, que insignificantes como vocês e eu deverão pronunciar Molking. Era para aí que a levavam, para uma rua chamada Himmel». In Markus Zusak, 2005, A Rapariga que Roubava Livros, tradução de Manuela Madureira, Editorial Presença, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-233-907-0.

Cortesia de EPresença/JDACT