De como eu fui chamado o santinho da
putaria
«(…) E que tem tudo isto que ver
com a minha grande vontade de ser santo, haverão alguns de inquirir e logo eu
darei resposta mui asinha que foi assim que tudo teve seu começo em minha
história, e que assim foi o princípio da minha grande vontade de ser obediente,
e cumpridor, e de tudo fazer em grande preceito. Tenho por certo que foi desde
esta hora ao diante que eu comecei a querer ser santo acima de todas as coisas,
e grande e verdadeiro santo, como é São Vicente na cidade de Lisboa, com quanto
muitos creiam que Santo António lhe passa em santidade e soma de milagres, o
que poderá ser muito certo, mas disto nunca ninguém estará seguro, pois coisas
desta natureza vêem-se em todas as terras e sempre assim se fica, sem saber
qual dos santos é mais santo, não havendo nunca destes assuntos prova fundada,
e guardando sempre Deus Pai grande recato de Seu infinito saber.
Creio, porém, que muito certo
desta minha natureza cumpridora ficou meu senhor desde os primeiros dias, pois
que enquanto me ensinava quantas partes de cal se hão-de deitar nas borras de
azeite para fazer o sabão, e que outras banhas hão-de ser fervidas e o quanto
de cinzas se lhe há-de ajuntar, me ia prometendo desde logo e para muito breve,
um novo ofício. E assim foi que corridas não mais que algumas semanas, fui
levado para a putaria velha e para a companhia das mulheres solteiras e
mundanais, sem que meu senhor Bento Garcia me desse por hora mais explicação.
Sobrevieram-me então umas melancolias
muito fortes, pois que aos seis ou sete anos de idade a companhia de tais
mulheres de má fazenda não se tem por tão prazenteira como é dos catorze ao diante,
não infundindo senão grandes temores pelo pecado. Mas nisto de ser eu levado
para a putaria velha, havia somente grande manha de meu senhor. Queria ele
verdadeiramente que todo o povo ficasse cuidando que eu não era já seu criado e
que a outrem andava eu já servindo. Mas outros não eram seus intentos que fazer
com que todos na vila cuidassem ter sido eu vendido a Briolanja, que era a pu…
mandante na putaria velha, e isto era por não lhe fazer a ele serventia minha
miudeza de braços, no mexer das borras do azeite ao lume e em todo o fazer do
sabão.
Queria meu senhor que todos me
tomassem na vila por um desventurado menino lançado aos infernos, tão só para
luxúria e desenfado da pecadora Briolanja, que para mais de mandante de
putaria, muito se lambia também por carne tenra, fosse ela macho ou fêmea, não
lhe chegando para seu consolo desonesto as muitas ocasiões em que se ajuntava
com homens. Porém, tal coisa não era fundada em nenhuma das partes que trago
contadas, por quanto verdade alguma havia em toda esta grande fábula que contavam
as mais das gentes de Torres Novas sobre Briolanja. Verdade era somente o
secreto entendimento que havia entre meu senhor Bento Garcia e a sobredita
Briolanja, que além de muita soma de vezes se acharem os dois desenfadando um com
o outro na putaria, e bem assim atrás de umas moitas de gamboa, ainda acertaram
de me fazer a mim espia das más coisas que andava fazendo o povo, com o que
haviam de ganhar os dois muita soma de dinheiro. Mais não era o ofício que me
destinava Bento Garcia que andar espiando e descobrindo quem fazia sabão das
borras de seus azeites e que de tal modo andasse tirando nas rendas da
saboaria, contra aquilo que estava ordenado por todo o reino». In
Pedro Canais, A Lenda de Martim Regos, Oficina do Livro, 2004, ISBN
978-989-555-079-1.
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