domingo, 2 de agosto de 2015

A Rosa do Povo. Poesia. Carlos D. Andrade. «Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas. Não é a música ouvida de passagem; o rumor do mar nas ruas perto da linha de espuma»

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Procura da poesia
«Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol extático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes
pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo,
tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e o que sentes, isto ainda não é poesia.
                
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o
segredo das casas.
Não é a música ouvida de passagem; o rumor do mar
nas ruas perto da linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança
nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objecto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem nâ curva do tempo, é algo imprestável,

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, não era cristal.

Penetra surdamente no reino das palavas.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intacta.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário».
[…]
Poema de Carlos Drummond de Andrade, in ‘A Rosa do Povo

In Carlos Drummond de Andrade, A Rosa do Povo, Livraria José Olympo Editora, São Paulo, 1945.

Cortesia de LJoséOlympio/JDACT