segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Interpretações no 31. O Príncipe. Nicolau Maquiavel. «… que foi, e é, um dos maiores escritores da literatura italiana, e, se compreendida e situada no tempo dele, a sua obra ‘é a de um dos mais argutos, lúcidos e corajosos pensadores políticos’…»

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Jamais houve homem menos maquiavélico do que Maquiavel. In Villari

Maquiavel, o prisioneiro do maquiavelismo
«(…) Envolto num ambiente de contenda, Maquiavel acabou por ficar atado ao pelourinho da infâmia, as suas ideias, tanto no linguajar popular como na conceitualização erudita, associadas a uma acepção pecaminosa, simbolizando a palavra maquiavélico a urdidura do enredo enganador, a vileza da traição aleivosa, a perfídia desapiedada, em suma, o principado da amoralidade, em resumo, o(a) diabólico(a). Papini, que tem o condão de resumir grandes reflexões em pequenas frases, sintetizou: … Maquiavel ficou com fama de porco por causa de La Mandragola e de canalha por causa de O Príncipe. E, no entanto, poder-se-á dizer, como escreveu Sena, que ...ele foi, antes de mais, um patriota italiano e um estadista angustiado por ver a sua Itália dividida em principados, repúblicas, estados papais, e territórios de potências estrangeiras? Poder-se-á dizer, acompanhando de novo Jorge de Sena, um engenheiro a quem a literatura tanto deve, que foi, e é, um dos maiores escritores da literatura italiana, e, se compreendida e situada no tempo dele, a sua obra é a de um dos mais argutos, lúcidos e corajosos pensadores políticos de todas as épocas? Talvez, ou nem tanto. Eis do que se trata: de amar, odiar ou compreender este livro. Lê-lo não basta. Ele pode ser um produto do riso irónico sobre os poderosos ou o fruto de uma raiva contida sobre as suas vítimas. Manual de política ou novela alegórica? Vejamos pois, começando pelo seu autor, aproximando-nos do momento em que o escreveu.

Escrever para parecer vivo
Estamos no dia 7 de Novembro de 1512, em Florença. O secretário da Segunda Chancelaria, cumulativamente secretário dos Dieci di Libertà, organismo incumbido da defesa da cidade, Niccolò Machiavegli, como assinava então, é informado pela Senhoria de que perdeu os seus lugares, estando deles exonerado, sendo substituído por um também Niccolò, mas Michelozzi, de quem não reza hoje a História. Mudara o regime que governava a cidade, os de Medici haviam regressado em força, depois de dezoito anos de exílio. Piero Soderini, o gonfaloniere vitalício, (o governo de Florença era então confiado bimestralmente a nove cidadãos eleitos com o título de gonfaloniere, gonfaloneiro em português; Piero Soderini (1452-1522) sê-lo-ia por designação vitalícia, mas o seu mandato acabou por durar apenas oito anos) cabeça da ordem política agora caída, vira ser-lhe retirado, num primeiro momento, essa perenidade do cargo, para ser depois substituído por Giovan Battista Ridolfi. A sua tibieza, a incapacidade de lidar com os graves problemas do seu tempo, o facto de ter consentido a realização do concílio cismático de Pisa, evento animado pelo rei Luís XII de França e que levou à queda do papa Júlio II, foram a causa da sua desgraça. Niccolò, considerado um mannerino do deposto, um instrumento da sua política, teria de seguir-lhe os passos.
A estrutura do mando é profundamente alterada. Tanto Maquiavel como o seu dilecto coadjuctor, Biagio Buonaccorsi, sabem que a sua posição está em causa. Aqueles que haviam servido estão apeados. Para o autor de O Príncipe nasce aqui a grande lição de vida, a confirmação do essencial da sua filosofia, o que faz dele, séculos volvidos, o mestre observador da arte da política: a bondade, a generosidade, a tibieza, o escrúpulo moral são, na política, instrumentos inúteis. Comentando, em um dos seus Discorsi, o comportamento daquele seu senhor agora caído, censura-lhe a paciência e a bondade de alma e, sobretudo, o ter seguido os humores da multidão, preterindo os conselhos dos homens sábios, franqueando as portas aos seus adversários; ao não ter tomado as medidas extraordinárias que a situação exigia, perdera a pátria, o Estado e a sua própria reputação. O regime que servira caíra ante a sua incapacidade de fazer mal: eis, nesta apologia do mal instrumental, neste desprezo pela inocência do bem absoluto, nesta ênfase do conselho da aristocracia dos sábios, neste relegar dos humores da multidão, a estrutura resumida do que pensava Maquiavel sobre o modo como deve agir o político, para que possa conseguir sucesso, no meio hostil em que tem de sobreviver». In Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Introdução de José António Barreiros, tradução de Maria Jorge Figueiredo, Editorial Presença, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-23-3951-3.

Cortesia de EPresença/JDACT