quinta-feira, 1 de agosto de 2019

A Filha do Papa. Luís Miguel Rocha. «De repente, sentiu um objecto metálico encostar-se à sua cabeça e escutou um ruído mecânico que ouvira tantas vezes na casa de campo da família, quando o pai carregava as armas para a caça…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Destrancou a porta, acendeu a luz e estacou. O contraste com o resto do quarto era evidente. Parecia que alguém deixara a janela aberta e a corrente de ar espalhara papéis por todo o lado. Em cima da secretária, no chão, na cadeira. Por trás da secretária estava afixado um painel cheio de recortes de jornais, fotografias, um pequeno mapa do norte de Itália ao centro, com indicadores de várias cores cujo significado desconhecia, outro da Europa no topo superior direito. O que significava aquilo tudo? Concentrou-se nas fotografias para ver se conhecia alguém. Fita adesiva vermelha ligava duas das fotografias…, dois homens. Um bem mais velho que o outro. O mais velho vestia um fato preto e saía de um carro grande e preto, ladeado por dois homens de uniforme que pareciam polícias, o outro tinha um aspecto jovem e moderno. Essas duas fotografias estavam encimadas por um recorte do L’Arena com uma notícia antiga, datada de 1983. Atropelamento e fuga matam padre em Verona, na Via Carlo Cattaneo. O artigo trazia um retrato do malogrado padre a fitar a objectiva como se estivesse a posar para um documento oficial. Bernarda não reconheceu nenhum dos homens, e aproximou-se do painel para o observar com mais atenção.
De repente, sentiu um objecto metálico encostar-se à sua cabeça e escutou um ruído mecânico que ouvira tantas vezes na casa de campo da família, quando o pai carregava as armas para a caça, e fechou os olhos apavorada. Nunca ouviu dizer, sussurrou-lhe o monsenhor Lucarelli ao ouvido, que a curiosidade matou o gato, irmã Mia Gustaffsen?

John Scott preferiria estar na sala de espera do consultório da doutora Pratt M.D., em Nova Iorque, do que ali onde estava. À apreensão e à paranóia juntara-se o pânico, ingrediente essencial para os arrepios e suores frios que tentava esconder a todo o custo. A audiência com o Secretário de Estado da Santa Sé, na Cidade do Vaticano, em pleno coração romano, estava marcada para aquela segunda-feira às dez e meia da manhã. Não deixava de registar de forma sinceramente inesperada que o ramalhete de sensações e sentimentos que o preenchiam, segundo o método da doutora Pratt M.D., a sua psiquiatra, era muito mais negativo que positivo, facto estranho, já que se encontrava em terras de Nosso Senhor Jesus Cristo, pretensamente um lugar de paz e amor. Estava sentado em frente a uma estátua do Nazareno, numa versão violenta, golpeado no ventre, nas mãos e nos pés, num visível esgar de sofrimento inconcebível. Ao lado, outro santo, São Judas Tadeu, de tamanho inferior, pois nada nem ninguém podia cobiçar as alturas de Jesus. O santo, bem a propósito, era aquele a que se devia recorrer em caso de desespero e nas causas perdidas, predição ou coincidência, num mundo onde nada acontecia por acaso.
John segurava um dossiê castanho encostado ao peito, como se nele guardasse um segredo muito valioso. A sua mais recente investigação levara-o ali, a uma audiência com o número dois do Vaticano, Tarcisio, um Salesiano de Piemonte, conhecido pela sua frontalidade, se bem que muitas vezes confundida com arrogância. Quarenta e sete minutos depois de ter chegado e trinta e dois depois da hora marcada, John foi convidado a entrar no gabinete por um jovem de batina preta. Um homem alto e imponente veio recebê-lo com um meio sorriso e indicou-lhe uma cadeira, em frente a uma enorme secretária, onde se sentar. Tarcisio foi cordato o suficiente, não demasiado, e sentou-se no cadeirão que estava de costas para uma parede onde dominava uma imagem do Papa Bento XVI a fitar austeramente a ampla sala. John não se lembrava de alguma vez ter entrado num gabinete com tanto fausto, e era um homem que se podia dar ao luxo de dizer, embora nunca o fizesse, que já entrara duas vezes na sala oval da Casa Branca e uma no Primeiro Edifício, mais conhecido como Senado, no Kremlin. A maioria das paredes estava coberta por estantes que iam do chão ao tecto, repletas de livros, pastas, incunábulos, visivelmente inventariados para que ninguém se perdesse nos meandros de séculos de informação. Havia ainda um sofá de pele castanho de três lugares e uma janela que dava para o pátio de São Dâmaso, a entrada oficial do palácio medieval, parte integrante do Palácio Apostólico. Uma porta na parede oposta à da secretária dava para outra divisão que John não conseguiu identificar por estar fechada». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT