«(…) Voltou a guardar a garrafa
bojuda e de seguida também ele, assim encharcado como estava, recolheu-se ao
beliche. As ondas embatiam com força no casco do navio, bem próximo da sua
cabeça. Baloiçava para cima e para baixo, a tempestade embalava-o. A alguém
como ele, Antero sabia que Deus, ao rogar-lhe o regresso à tranquilidade, nem
sequer daria ouvidos. De resto, ele nem sequer se fiava no auxílio de Deus. Era
um maldito de um contrabandista, um homem sem fé. Se fosse parar ao fundo do
mar no interior daquele barco, aguardavam-no depois os austeros anjos e o Juízo
Final. Qual serpente, o medo carcomia-lhe as entranhas. Sentia tonturas e
estremecia de frio e cansaço. Lamento..., sussurrou, pensando no seu herbário,
no livro de apontamentos com os desenhos de escaravelhos, nos serões que passara
no observatório astronómico dos Jesuítas em Lisboa. Em tempos dediquei-me à
investigação, meu Deus. Era um daqueles que andavam em busca dos Teus vestígios.
Por favor, não Te esqueças disso.
Dalila aproximou da sua cara o
lenço de rosto de Antero e inalou o odor deste, tomando-o como se de um remédio
se tratasse: a água do mar e a acerba fragrância masculina. Se Leonor se desse
conta de que ela lhe tinha roubado o lenço, iria enfurecer-se. E Antero? Se
soubesse que o seu lenço de rosto era cheirado por outra que não aquela a quem
ele o dera, como iria reagir? Talvez ele também a pudesse amar a ela, Dalila.
Afinal, Leonor e ela eram irmãs gémeas. Era idêntico o aspecto dos seus rostos
e dos seus corpos, ainda que o carácter de cada uma delas fosse bem diferente. A
chama da vela combatia a escuridão do quarto. No exterior, a chuva fustigava as
portadas. Dalila afagava suavemente com a mão por cima da coberta. A respiração
da pequenita era regular. Estaria a dormir? Os relâmpagos não nos conseguem
acertar? Afinal ainda não adormecera. Já te expliquei isso, querida, sussurrou
Dalila. Aqui estamos a salvo. Como se chama isso? O que nos protege? Pára-raios.
Dalila acariciava o tufo de cabelo ruivo da pequenina. O cabelo desta cintilava
à luz da vela. No meio da enorme cama, parecia carecer de protecção. Dalila
acrescentou: foi um senhor inteligente que o descobriu, e agora já nada de mal
poderá acontecer-nos. Repara só como está aconchegado aqui dentro, enquanto lá
fora faz aquele temporal! Temos a vela, está quente, e estamos aqui a seco. Ouviu-se
o estrondo de um trovão. Tacteando, a mão da pequenita procurou a de Dalila. Ficas
aqui? Dalila pegou na mão da criança e acariciou-a. Fico. Não tenhas medo.
Tinha pena da menina. Fora
concebida por um qualquer nobre libidinoso e uma criada e depois deixada a
crescer algures, bem longe. Seria de certeza apenas em troca de uma soma
exorbitante que o seu pai sustentava a menina, e incumbira expressamente a austera
cozinheira de se ocupar da pequenina. Não podia saber que a sua filha estava
aqui em baixo, pois trataria logo de dizer: não há nada de que uma rapariga
nobre possa andar à procura aqui nos aposentos da criadagem, Dalila! A casa
encontrava-se dividida, nos andares superiores estava o céu, era aí que eles
habitavam, e lá em baixo ficava o inferno, onde vivia a criança ilegítima que
ninguém queria. E, no entanto, a menina pertencia presumivelmente também à
nobreza! Uma criança nobre que crescia nos aposentos da criadagem, entre
tachos, caixotes do lixo e a gamela dos cães. O cão também não conseguia
adormecer. Olhava em silêncio na direcção da janela, para lá da qual os
relâmpagos iluminavam a noite. Ainda bem que ele fazia companhia à pequenina de
noite e de dia. Era como se lhe substituísse o pai e a mãe. Por vezes, parecia
a Dalila que aquele inteligente animal o sabia. Virou-se para o lado e voltou a
cheirar o lenço de rosto de Antero. Pelo seu nariz absorvia o odor a aventuras.
Aquele Virou-se para o lado e voltou a cheirar o lenço de rosto de Antero. Pelo
seu nariz absorvia o odor a aventuras. Aquele homem era mesmo livre. Percorria
alegremente os confins do mundo. Que tens tu aí?, perguntou a pequenita. Dalila
estremeceu. É só um lenço, respondeu, escondendo-o junto do peito». In
Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010, tradução de Paulo Rêgo, Casa das
Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.
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