terça-feira, 22 de março de 2016

Leonardo da Vinci. Sophie Chauveau. «Quanto ao imenso cientista, o mais prodigioso inventor de máquinas que o universo jamais conheceu, os seus famosos Cadernos só foram redescobertos muito depois do seu tempo, quando chegou a hora de inventar as suas esquecidas descobertas...»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Quando alguém é o símbolo personificado da pintura, da beleza e mesmo do génio, deve adaptar-se ao gosto de cada época. Quinhentos anos mais tarde, Da Vinci teve tempo de assumir um grande número de personalidades. Os seus biógrafos sucessivos reinventaram-no segundo a moda de cada época. Ele mesmo embaralhou as pistas e contribuiu bastante para a própria lenda. Existem outras grandes figuras na história que tenham sofrido flutuações biográficas comparáveis? Certamente algumas, dentre as quais aquelas consideradas como génios universais... Mas ainda assim Da Vinci continua sendo a personagem mais complexa e mais controvertida. Não se passa meio século sem que haja uma nova revisão da sua vida e até mesmo das suas obras, cujo conceito evolui radicalmente segundo a época. Como nos devemos situar nessa floresta de contradições? Dois métodos são aqui utilizados simultaneamente: o confronto e a íntima convicção. É o que parece mais justo, levando em conta a época em que ele viveu: Florença e a sua efervescência, algumas pequenas revoluções próprias ao Renascimento, como a emergência do estatuto do artista, as pestes, algumas viagens comprovadas, algumas referências biográficas devidamente registadas (contratos, processos, nascimentos, mortes...), algumas ínfimas certezas; enfim, a verdadeira mudança de perspectiva operada por Leonardo, novo ponto de vista sobre o mundo no qual, no centro do motivo, não é mais Deus que prima, mas o homem. Quanto ao resto, há que seleccionar entre as diversas versões aquela que historicamente parece a mais provável. É só aceitar as que coincidem pelo menos três vezes. Por exemplo, e para começar pelo fim, o famoso quadro de Ingres, no qual, no instante da sua morte, Francisco I sustenta Leonardo nos braços: nesse dia preciso em que Leonardo morre, o rei está em Saint-Germain-en-Laye cumprindo uma obrigação real e paterna, o baptizado do seu segundo filho. A inverossimilhança é total... Como a do mais humilde dos homens, ela deve começar pelo nascimento, continuar pelo curso da existência e terminar pela morte. Só que, no caso de Leonardo, as dificuldades surgem já na origem. Ele nasce em segredo, e não se sabe onde. Em Vinci, em Anchiano? Na casa da mãe, do pai? Em compensação, a data do seu baptismo é consignada com solenidade no livro das lembranças do seu avô paterno, António. As crianças eram geralmente baptizadas um dia após o nascimento. Portanto, ele teria nascido em 15 de Abril de 1452. A seguir, nada de preciso até aos doze, catorze ou dezasseis anos. Após a morte do avô, ou da primeira esposa do pai, que de certa forma cuidava dele em Vinci,, ser Piero, seu pai, o faz ir a Florença, onde passará cerca de vinte anos. Lá ele conhece sucessos magníficos e fracassos espectaculares. Não obtém o reconhecimento que lhe é devido, tanto aos seus olhos como aos olhos dos seus pares. Alguns problemas com a justiça mancham gravemente a sua reputação. Ele prefere fugir, tentar a sorte na Lombardia, junto a Ludovico Sforza, duque de Milão. Ali também ficará cerca de vinte anos, oscilando, como em Florença, entre êxitos e fracassos igualmente retumbantes. A fase final da sua vida, depois de Milão, por mais uns vinte anos, passa-se na errância e na dependência. Perto do fim teria mesmo sofrido o assédio da miséria, não tivesse o soberano da França afeiçoado-se por ele e lhe oferecido a hospitalidade real na Touraine. Onde Leonardo estará enterrado? Não há túmulo, nem ossário. A Revolução Francesa e o tempo encarregaram-se de dispersar o pouco dos seus restos mortais. De forma que esse homem, célebre desde a sua juventude até hoje, ou seja, nos cinco séculos subsequentes à sua morte, não repousa em parte alguma. Mais vivo do que nunca, continua sendo um mito em contínua reelaboração. Como se desde o seu desaparecimento ele tivesse aperfeiçoado a lenda que já sentira um grande prazer em cultivar enquanto vivia. O seu nome, no mundo inteiro sinónimo de beleza, arte e diletantismo, magia e graça, absoluto e génio, faz pensar na medida do mistério que o envolve. O mais célebre pintor do universo deixou no mundo apenas uma dúzia de quadros de sua autoria. Inacabados ou danificados... O maior escultor da humanidade não legou à posteridade nenhum testemunho do seu génio... O melhor arquitecto, sequer... O engenheiro militar que se orgulhava de ter descoberto o maior número de meios técnicos capazes de ganhar todas as guerras e de matar a guerra, como dizia, também nada deixou... Quanto ao imenso cientista, o mais prodigioso inventor de máquinas que o universo jamais conheceu, os seus famosos Cadernos só foram redescobertos muito depois do seu tempo, quando chegou a hora de inventar as suas esquecidas descobertas... Nenhum historiador poderia afirmar seriamente que os desenhos das suas maravilhosas máquinas não são simples citações, cópias bem informadas de invenções que pairavam no ar e nas preocupações da época. E, se foram invenções dele, como teria podido realizá-las? Os materiais indispensáveis à sua construção ainda não existiam. Recentemente em Madrid, em Junho de 2000, num caderno autenticado como de autoria de Leonardo, descobriu-se o plano detalhado de um paraquedas piramidal, que permaneceu em segredo até ao século XXI. Um rico mecenas convence um paraquedista inglês, Adrian Nicholas, a testá-lo, saltando de uma altura de três mil metros no Parque Nacional Kruger, na África do Sul, equipado com o aparelho voador construído escrupulosamente segundo as indicações de Leonardo, com a única excepção de que o tecido é de algodão e não de linho. O velame possui uma armação de madeira de pinho e pesa cerca de cem quilos, quarenta vezes o peso dos paraquedas actuais. Mesmo assim, a descida efetua-se sem problemas. Os primeiros dois mil metros são percorridos em cinco minutos, ou seja, muito lentamente. Portanto, esse paraquedas funciona de forma perfeita! Mas é preciso abrir um paraquedas moderno para a última parte da queda. O modelo de Leonardo não é muito flexível e, sobretudo, é pesado demais para não se abater sobre o paraquedista na chegada, com risco de o matar. Algum dia saberemos se essas invenções guardadas por quatro ou cinco séculos, anotadas nos Cadernos, são apenas dele? Seria ele o autor só de algumas? Quais? Todos os artistas, na época, se copiam mutuamente, anotam a ideia, o projecto, o plano e mesmo a realização dos seus pares quando os julgam notáveis. De que serve nomear o autor? A invenção é que conta, é que faz sonhar. Com muita frequência, quem reproduz o sonho de determinada máquina não é o seu criador, mas o seu admirador e, no caso de Leonardo, talvez o seu aperfeiçoador. Não sabemos, e certamente nunca saberemos, por quem essas maravilhosas máquinas foram concebidas. Da bombarda à bicicleta, do submarino ao paraquedas, do avião ao escafandro, todas essas inovações da nossa modernidade na verdade prescindiram do seu génio para vir ao mundo. Eruditos já as haviam imaginado antes dele. Roger Bacon descreveu quase todas as máquinas cuja invenção se atribui a Leonardo. E, mesmo se esses planos extraordinários lhe pertencessem, ele não teria tido nenhuma influência sobre o mundo científico. Mantidos em segredo nos cadernos que só começam a ser descobertos em 1880 e que certamente aguardam novas descobertas, os seus sonhos ficaram no estado de sonho, os seus projectos são letra morta. Ele não contribuiu, nem de perto nem de longe, para os progressos da humanidade». In Sophie Chauveau, Leonardo da Vinci, 2008, tradução de Paulo Neves, L&PM Pocket (colecção Biografias), Editora Gallimard, 2012, ISBN 978-852-542-640-6.

Cortesia de EGallimard/L&PM/JDACT