«Quando alguém é o símbolo personificado
da pintura, da beleza e mesmo do génio, deve adaptar-se ao gosto de cada época.
Quinhentos anos mais tarde, Da Vinci teve tempo de assumir um grande número de personalidades.
Os seus biógrafos sucessivos reinventaram-no segundo a moda de cada época. Ele
mesmo embaralhou as pistas e contribuiu bastante para a própria lenda. Existem
outras grandes figuras na história que tenham sofrido flutuações biográficas comparáveis?
Certamente algumas, dentre as quais aquelas consideradas como génios universais...
Mas ainda assim Da Vinci continua sendo a personagem mais complexa e mais
controvertida. Não se passa meio século sem que haja uma nova revisão da sua
vida e até mesmo das suas obras, cujo conceito evolui radicalmente segundo a
época. Como nos devemos situar nessa floresta de contradições? Dois métodos são
aqui utilizados simultaneamente: o confronto e a íntima convicção. É o que
parece mais justo, levando em conta a época em que ele viveu: Florença e a sua efervescência,
algumas pequenas revoluções próprias ao Renascimento, como a emergência do
estatuto do artista, as pestes, algumas viagens comprovadas, algumas
referências biográficas devidamente registadas (contratos, processos,
nascimentos, mortes...), algumas ínfimas certezas; enfim, a verdadeira mudança
de perspectiva operada por Leonardo, novo ponto de vista sobre o mundo no qual,
no centro do motivo, não é mais Deus que prima, mas o homem. Quanto ao resto,
há que seleccionar entre as diversas versões aquela que historicamente
parece a mais provável. É só aceitar as que coincidem pelo menos três vezes. Por
exemplo, e para começar pelo fim, o famoso quadro de Ingres, no qual, no
instante da sua morte, Francisco I sustenta Leonardo nos braços: nesse dia preciso
em que Leonardo morre, o rei está em Saint-Germain-en-Laye cumprindo uma
obrigação real e paterna, o baptizado do seu segundo filho. A inverossimilhança
é total... Como a do mais humilde dos homens, ela deve começar pelo nascimento,
continuar pelo curso da existência e terminar pela morte. Só que, no caso de
Leonardo, as dificuldades surgem já na origem. Ele nasce em segredo, e não se
sabe onde. Em Vinci, em Anchiano? Na casa da mãe, do pai? Em compensação, a
data do seu baptismo é consignada com solenidade no livro das lembranças
do seu avô paterno, António. As crianças eram geralmente baptizadas um dia após
o nascimento. Portanto, ele teria nascido em 15 de Abril de 1452. A seguir,
nada de preciso até aos doze, catorze ou dezasseis anos. Após a morte do avô,
ou da primeira esposa do pai, que de certa forma cuidava dele em Vinci,, ser
Piero, seu pai, o faz ir a Florença, onde passará cerca de vinte anos. Lá
ele conhece sucessos magníficos e fracassos espectaculares. Não obtém o
reconhecimento que lhe é devido, tanto aos seus olhos como aos olhos dos seus
pares. Alguns problemas com a justiça mancham gravemente a sua reputação. Ele
prefere fugir, tentar a sorte na Lombardia, junto a Ludovico Sforza, duque de
Milão. Ali também ficará cerca de vinte anos, oscilando, como em Florença,
entre êxitos e fracassos igualmente retumbantes. A fase final da sua vida,
depois de Milão, por mais uns vinte anos, passa-se na errância e na
dependência. Perto do fim teria mesmo sofrido o assédio da miséria, não tivesse
o soberano da França afeiçoado-se por ele e lhe oferecido a hospitalidade real
na Touraine. Onde Leonardo estará enterrado? Não há túmulo, nem ossário. A
Revolução Francesa e o tempo encarregaram-se de dispersar o pouco dos seus
restos mortais. De forma que esse homem, célebre desde a sua juventude até
hoje, ou seja, nos cinco séculos subsequentes à sua morte, não repousa em parte
alguma. Mais vivo do que nunca, continua sendo um mito em contínua
reelaboração. Como se desde o seu desaparecimento ele tivesse aperfeiçoado a
lenda que já sentira um grande prazer em cultivar enquanto vivia. O seu nome,
no mundo inteiro sinónimo de beleza, arte e diletantismo, magia e graça, absoluto
e génio, faz pensar na medida do mistério que o envolve. O mais célebre pintor
do universo deixou no mundo apenas uma dúzia de quadros de sua autoria.
Inacabados ou danificados... O maior escultor da humanidade não legou à posteridade
nenhum testemunho do seu génio... O melhor arquitecto, sequer... O engenheiro militar
que se orgulhava de ter descoberto o maior número de meios técnicos capazes de ganhar
todas as guerras e de matar a guerra, como dizia, também nada deixou...
Quanto ao imenso cientista, o mais prodigioso inventor de máquinas que o
universo jamais conheceu, os seus famosos Cadernos só foram
redescobertos muito depois do seu tempo, quando chegou a hora de inventar as
suas esquecidas descobertas... Nenhum historiador poderia afirmar seriamente
que os desenhos das suas maravilhosas máquinas não são simples citações, cópias
bem informadas de invenções que pairavam no ar e nas preocupações da época. E,
se foram invenções dele, como teria podido realizá-las? Os materiais
indispensáveis à sua construção ainda não existiam. Recentemente em Madrid, em Junho
de 2000, num caderno autenticado como de autoria de Leonardo, descobriu-se o
plano detalhado de um paraquedas piramidal, que permaneceu em segredo até ao
século XXI. Um rico mecenas convence um paraquedista inglês, Adrian Nicholas, a
testá-lo, saltando de uma altura de três mil metros no Parque Nacional Kruger,
na África do Sul, equipado com o aparelho voador construído escrupulosamente
segundo as indicações de Leonardo, com a única excepção de que o tecido é de
algodão e não de linho. O velame possui uma armação de madeira de pinho e pesa
cerca de cem quilos, quarenta vezes o peso dos paraquedas actuais. Mesmo assim,
a descida efetua-se sem problemas. Os primeiros dois mil metros são percorridos
em cinco minutos, ou seja, muito lentamente. Portanto, esse paraquedas funciona
de forma perfeita! Mas é preciso abrir um paraquedas moderno para a última
parte da queda. O modelo de Leonardo não é muito flexível e, sobretudo, é
pesado demais para não se abater sobre o paraquedista na chegada, com risco de o
matar. Algum dia saberemos se essas invenções guardadas por quatro ou
cinco séculos, anotadas nos Cadernos, são apenas dele? Seria ele o autor
só de algumas? Quais? Todos os artistas, na época, se copiam mutuamente, anotam
a ideia, o projecto, o plano e mesmo a realização dos seus pares quando os
julgam notáveis. De que serve nomear o autor? A invenção é que conta, é que faz
sonhar. Com muita frequência, quem reproduz o sonho de determinada máquina não
é o seu criador, mas o seu admirador e, no caso de Leonardo, talvez o seu aperfeiçoador.
Não sabemos, e certamente nunca saberemos, por quem essas maravilhosas máquinas
foram concebidas. Da bombarda à bicicleta, do submarino ao paraquedas, do avião
ao escafandro, todas essas inovações da nossa modernidade na verdade
prescindiram do seu génio para vir ao mundo. Eruditos já as haviam imaginado
antes dele. Roger Bacon descreveu quase todas as máquinas cuja invenção se
atribui a Leonardo. E, mesmo se esses planos extraordinários lhe pertencessem,
ele não teria tido nenhuma influência sobre o mundo científico. Mantidos em
segredo nos cadernos que só começam a ser descobertos em 1880 e que certamente
aguardam novas descobertas, os seus sonhos ficaram no estado de sonho, os seus projectos
são letra morta. Ele não contribuiu, nem de perto nem de longe, para os
progressos da humanidade». In Sophie Chauveau, Leonardo da Vinci, 2008,
tradução de Paulo Neves, L&PM Pocket (colecção Biografias), Editora
Gallimard, 2012, ISBN 978-852-542-640-6.
Cortesia de EGallimard/L&PM/JDACT