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E falta justiça à insistência desta manhã, falta justiça ao artificial desta
primavera, a esta luz fina. O ar finge-se respirável, a lezíria finge-se
infinita na asfixia deste lugar pequeno e emparedado. E este lugar que era
mundo, agora, vazio oco quer ser mundo ainda. E, realmente, tudo se mantém
suspenso. Tudo quer e tenta ser igual. Todos parecem acreditar. Sem ti, as
pessoas ainda vão para onde iam, ainda seguem as mesmas linhas invisíveis. Mas
eu sei, pai. Perderam-se as leis contigo. Perdeu-se a ordem que trazias. Pai. O
céu arrasta nuvens transparentes num êxodo lento. A estrada corta este mundo,
divide, directa ao horizonte que não há, directa ao céu. Ao nosso lado, passam
a correr, a fugir, a deslizar oliveiras, passam troncos verticais direitos,
momento a momento, passam, alternam-se, sobrepõem-se copas emaranhadas de
oliveiras. Cresce a manhã, cresce o cansaço. E a luz insiste. E a primavera. E
o motor insiste uma entoação constante de insecto, uma constante voz
subterrânea que a pouco e pouco se me infiltra entre as costelas e, na prisão
do meu peito, se torna grito. Seguro o volante. Cresce a manhã, cresce o
cansaço. Vou. Avanço, avanço e regresso. E cada quilómetro, um mês; e cada
metro, um dia. Avanço para o que fomos. Encontrei nas pedras deste caminho, no
luminescente desta viagem, um espaço por onde entrei e acelero, onde cada
quilómetro em frente é um mês que recuo. E avanço neste caminho que fizemos mil
vezes juntos e avançam as estações do ano: primavera inverno outono verão
primavera inverno... E avançam os quilómetros neste sítio onde entro como se
caísse. Vertiginosamente. Atiro-me neste poço, no fundo que não se vê deste
poço. E há tanta luz. Há os instantes que vivemos mil vezes juntos e que agora
nascem sem nós e nos ultrapassam. Há o sol que partilhámos mil vezes e que
agora não te aquece, que agora não me aquece. Pai. Passo por tudo e tudo me
deixa e passa por mim. Caio. Avanço. Regresso. Na berma da estrada, entre
extensões amarelecidas de mato e cardos secos, entre searas gigantes de trigo,
rompem ervas corajosas poucas, rompem papoilas que do fogo sangue das suas
chamas ateiam o louro, o áureo. Marés fulvas ardem. Mantas amarelas que sobem
ao céu e ao sol, que o trespassam e jorram dele. E na manhã, quase tarde, desta
primavera tórrida, tanto brilho encandeia. Cego, olho para o lado e vejo-me
pequeno, há muitos anos, sentado sob a faixa importante do cinto de segurança,
vejo-me sem paciência a perguntar quanto é que falta? Volto com o olhar à
estrada. Respiro. Encontro em mim a serenidade para dizer falta pouco, falta
pouco. Fixo o traço contínuo ou intermitente, branco e fito-me, pequeno de uns
dez ou onze anos, fito-me tornado mancha e vulto no canto do olho. Quanto é que
falta? Na terra, o pó eleva a idade e a combustão desta hora. Falta pouco,
falta pouco. Atravessamos uma vila branca e tão deserta como esta estrada
vazia, esta estrada sem ninguém. Atravessamos uma vila, já perto da nossa, esta
vila de casas brancas, esta vila que conhecias e onde te conheciam.
Atravessamos esta vila deserta onde todos te esqueceram. Dos meus lábios, as
tuas palavras, os teus lábios, o teu conto pequeno e igual que contavas e
sabias de cor, e sabíamos de cor. O conto. E perguntava-te se era verdade, se
tinha mesmo acontecido; tu, simples, escondendo detalhes no olhar abstracto e
no veludo liso vivo da face e da testa, como se respondesses, dizias é um
conto. E selavas a conversa, e não falávamos mais sobre isso. Olho-me, vejo-me
no banco, atento ao que pensava, pequeno e grandinho para os poucos anos,
alimentado, a crescer, a faltar-me nada. E sinto uma alegria, a satisfação de
ter conseguido dar o que não pude ter; contente, a satisfação imensa de ter conseguido.
Sim, pai, conseguiste. Conseguiste tudo. Deste-me o que tenho. Construíste-me e
construíste esperança no que tocaste. E olho-me pela última vez, vejo-me. A
carne, o querer de criança. E sigo a febre, o fervente do que se aproxima e
afasta. Quanto é que falta?, ouço ainda. Viro-me de repente e só o lugar vazio,
o silêncio mais intenso, o sítio das palavras vago em cada linha de claridade,
em toda esta luz. Invento, e digo falta pouco, falta pouco». In
José Luís Peixoto, Morreste-me, Temas e Debates, 2000/2001, ISBN 972-759-370-4.
Cortesia
de TDebates/JDACT