segunda-feira, 28 de março de 2016

Morreste-me. José Luís Peixoto. «Quanto é que falta?, ouço ainda. Viro-me de repente e só o lugar vazio, o silêncio mais intenso, o sítio das palavras vago em cada linha de claridade, em toda esta luz»

jdact e wikipedia

«(…) E falta justiça à insistência desta manhã, falta justiça ao artificial desta primavera, a esta luz fina. O ar finge-se respirável, a lezíria finge-se infinita na asfixia deste lugar pequeno e emparedado. E este lugar que era mundo, agora, vazio oco quer ser mundo ainda. E, realmente, tudo se mantém suspenso. Tudo quer e tenta ser igual. Todos parecem acreditar. Sem ti, as pessoas ainda vão para onde iam, ainda seguem as mesmas linhas invisíveis. Mas eu sei, pai. Perderam-se as leis contigo. Perdeu-se a ordem que trazias. Pai. O céu arrasta nuvens transparentes num êxodo lento. A estrada corta este mundo, divide, directa ao horizonte que não há, directa ao céu. Ao nosso lado, passam a correr, a fugir, a deslizar oliveiras, passam troncos verticais direitos, momento a momento, passam, alternam-se, sobrepõem-se copas emaranhadas de oliveiras. Cresce a manhã, cresce o cansaço. E a luz insiste. E a primavera. E o motor insiste uma entoação constante de insecto, uma constante voz subterrânea que a pouco e pouco se me infiltra entre as costelas e, na prisão do meu peito, se torna grito. Seguro o volante. Cresce a manhã, cresce o cansaço. Vou. Avanço, avanço e regresso. E cada quilómetro, um mês; e cada metro, um dia. Avanço para o que fomos. Encontrei nas pedras deste caminho, no luminescente desta viagem, um espaço por onde entrei e acelero, onde cada quilómetro em frente é um mês que recuo. E avanço neste caminho que fizemos mil vezes juntos e avançam as estações do ano: primavera inverno outono verão primavera inverno... E avançam os quilómetros neste sítio onde entro como se caísse. Vertiginosamente. Atiro-me neste poço, no fundo que não se vê deste poço. E há tanta luz. Há os instantes que vivemos mil vezes juntos e que agora nascem sem nós e nos ultrapassam. Há o sol que partilhámos mil vezes e que agora não te aquece, que agora não me aquece. Pai. Passo por tudo e tudo me deixa e passa por mim. Caio. Avanço. Regresso. Na berma da estrada, entre extensões amarelecidas de mato e cardos secos, entre searas gigantes de trigo, rompem ervas corajosas poucas, rompem papoilas que do fogo sangue das suas chamas ateiam o louro, o áureo. Marés fulvas ardem. Mantas amarelas que sobem ao céu e ao sol, que o trespassam e jorram dele. E na manhã, quase tarde, desta primavera tórrida, tanto brilho encandeia. Cego, olho para o lado e vejo-me pequeno, há muitos anos, sentado sob a faixa importante do cinto de segurança, vejo-me sem paciência a perguntar quanto é que falta? Volto com o olhar à estrada. Respiro. Encontro em mim a serenidade para dizer falta pouco, falta pouco. Fixo o traço contínuo ou intermitente, branco e fito-me, pequeno de uns dez ou onze anos, fito-me tornado mancha e vulto no canto do olho. Quanto é que falta? Na terra, o pó eleva a idade e a combustão desta hora. Falta pouco, falta pouco. Atravessamos uma vila branca e tão deserta como esta estrada vazia, esta estrada sem ninguém. Atravessamos uma vila, já perto da nossa, esta vila de casas brancas, esta vila que conhecias e onde te conheciam. Atravessamos esta vila deserta onde todos te esqueceram. Dos meus lábios, as tuas palavras, os teus lábios, o teu conto pequeno e igual que contavas e sabias de cor, e sabíamos de cor. O conto. E perguntava-te se era verdade, se tinha mesmo acontecido; tu, simples, escondendo detalhes no olhar abstracto e no veludo liso vivo da face e da testa, como se respondesses, dizias é um conto. E selavas a conversa, e não falávamos mais sobre isso. Olho-me, vejo-me no banco, atento ao que pensava, pequeno e grandinho para os poucos anos, alimentado, a crescer, a faltar-me nada. E sinto uma alegria, a satisfação de ter conseguido dar o que não pude ter; contente, a satisfação imensa de ter conseguido. Sim, pai, conseguiste. Conseguiste tudo. Deste-me o que tenho. Construíste-me e construíste esperança no que tocaste. E olho-me pela última vez, vejo-me. A carne, o querer de criança. E sigo a febre, o fervente do que se aproxima e afasta. Quanto é que falta?, ouço ainda. Viro-me de repente e só o lugar vazio, o silêncio mais intenso, o sítio das palavras vago em cada linha de claridade, em toda esta luz. Invento, e digo falta pouco, falta pouco». In José Luís Peixoto, Morreste-me, Temas e Debates, 2000/2001, ISBN 972-759-370-4.

Cortesia de TDebates/JDACT