sábado, 19 de março de 2016

Um Nome Escrito em Sangue. Matt Rees. «Um espirro era o primeiro sintoma. O menino virou-se rapidamente e lançou-lhe um sorriso tranquilizador. A cabeça do pai tombou como se a expressão do filho a tivesse seccionado dos ombros»

Cortesia de wikipedia e jdact

A História de Caravaggio
«Em Julho de 1610, desaparecia subitamente Michelângelo Merisi, conhecido como Caravaggio, o mais célebre artista italiano. Embora tivesse inimigos perigosos e a sua cabeça estivesse a prémio havia vários anos, afirma-se que morreu de febre. O seu corpo nunca foi encontrado. Ele morreu tão mal quanto viveu. Que bom final tem aquele que morre amando bem». In Petrarca (1304-1374)

A cidade de Caravaggio, no ducado de Milão. 1577
O menino estava sentado no escuro. Observe-o, pensou ele. Observe este homem deitado com as mãos sobre o ventre, com ânsia de vómito, fazendo caretas, suando, massageando-se com mãos de unhas enegrecidas. Os lençóis fedem, mas o menino continua sentado na cama. Ele quis ficar perto do inválido cujas partes íntimas e axilas estavam cheias de feridas em forma de bulbo provocadas pela peste. O homem era o seu pai e estava moribundo. Na cama ao lado estava o avô do menino. O velho afogava-se a cada respiração, agitando o peito estreito. A transpiração brilhava na sua barba grisalha. Riachos de suor tremeluziam entre as costelas salientes do torso arfante. Os vergões putrefactos da peste transbordavam-lhe das axilas como sanguessugas. A urina sanguinolenta infiltrava-se no colchão. O seu rosto tremia de vergonha sob o pálido raio de sol que se infiltrava por uma fresta da veneziana. A voz do seu pai. Será que a esqueceria? Ele sabia que sempre se lembraria destas palavras: Michele, porque estás aqui? Mas será que se lembraria do tom com que foram pronunciadas? Um baixo profundo, deformado e dissecado pela fornalha da Peste Negra até soar como o murmúrio inútil de um homem sufocado por um bocado de areia. Por quê? Para lhe fazer companhia, pai. As suas próprias palavras. Depois que ficou mais velho e sozinho, lembrava-se delas como a cadência de uma melodia inelutável. Perdido e inocente, ele a ouvia ressoando no seu cérebro. Ah, mas nunca na garganta. Aquela voz, a que soaria se ele abrisse a boca como adulto, havia sido privada de toda inocência. Vai, meu menino. Vai buscar o..., disse o pai ofegante, virando-se para o lado e tremendo. Ele ergueu os joelhos. O ar estava impregnado do cheiro da cal e do enxofre que afugentariam a doença, como afirmou a sua mãe. Fazia coçar o nariz e os pulmões do menino. E o cheiro o fazia espirrar. O pai ergueu a cabeça, num movimento mais rápido que qualquer outro que havia feito desde que a infecção o acometera. O rosto do homem contraiu-se aterrorizado. Um espirro era o primeiro sintoma. O menino virou-se rapidamente e lançou-lhe um sorriso tranquilizador. A cabeça do pai tombou como se a expressão do filho a tivesse seccionado dos ombros. Ele tornou a mergulhar nos seus tormentos. O menino também ficou a pensar no espirro e levou o braço fino e pálido até o cadarço das suas calças de chita para apalpar as virilhas. Nenhum inchaço, nenhum caroço. O cheiro de enxofre retornou, e ele percebeu que havia segurado a respiração. O avô estremeceu, com os olhos voltados para cima, brancos e cegos. Ele abriu mão da sua visão em favor da luz diminuta que chegava ao interior de seu crânio, de modo que um espírito refinado demais para a percepção humana pudesse revelar-se para ele. Quando as pupilas baixaram, estavam fixas e cegas, e o avô do menino ficou imóvel. As vias lacrimais do pai estavam secas devido ao vinagre com que ele tentara afastar a peste; as lágrimas não desceriam por elas. Ele bateu na cabeça com os punhos como se as lágrimas fossem apenas obstinadas, acabando por ceder, como um jumento, ao castigo. O menino ficou com eles durante horas. O pai continuava deitado ao lado do velho morto, murmurando palavras incoerentes devido à febre. Nessa noite, ele queixou-se de que a cama estava molhada e quente, deslizando para o chão e olhando para o negrume da noite. O menino ficou ao seu lado. Tu és jovem demais, Michele, gaguejou ele. Jovem demais para presenciar isto. A princípio o menino achou que ele queria dizer que uma criança de seis anos não deveria presenciar a partida do pai, o que lhe provocou um soluço, pois já pressentia como as coisas seriam sem ele. Então voltou-se na direcção do olhar do pai. Com os olhos oblíquos e palpitando, percebeu que o pai estava encarando o rosto da Morte. O menino nada conseguiu distinguir na escuridão. O pai abriu a boca para explicar o que estava vendo, mas sua mandíbula tombou e o seu peso se pressionou contra o menino. Este agarrou o cabelo revolto do pai para que a sua cabeça não chocasse contra o chão. O menino baixou o olhar para o morto. A sua testa contraiu-se de piedade acima dos olhos brandos. Mas a escuridão chamou-o. Ele viu alguma coisa movendo-se nela. O arrebatamento de uma vida e a súbita iluminação que baixa sobre os que se juntam à morte. O que padece de uma doença ou do sacrifício voluntário. O assassino e a sua vítima. Observe a escuridão, pensou ele. O que se materializa da sombra? O que surge quando se olham as coisas pretensamente ocultas? Continue a olhar e um dia você verá a sua forma. O seu olhar vai criar uma luz que penetra no mistério. Não é mesmo, pai?» In Matt Rees, Caravaggio, tradução de Valter Siqueira, 2012, Novo Século Editora, 2014, ISBN 978-854-280-209-2.

Cortesia NSéculoE/JDACT