A
História de Caravaggio
«Em Julho de 1610, desaparecia subitamente
Michelângelo Merisi, conhecido como Caravaggio,
o mais célebre artista italiano. Embora tivesse inimigos perigosos e a sua
cabeça estivesse a prémio havia vários anos, afirma-se que morreu de febre. O seu
corpo nunca foi encontrado. Ele morreu tão mal quanto viveu. Que bom final tem
aquele que morre amando bem». In
Petrarca (1304-1374)
A cidade de Caravaggio, no ducado de
Milão. 1577
O menino
estava sentado no escuro. Observe-o,
pensou ele. Observe este homem deitado
com as mãos sobre o ventre, com ânsia de vómito, fazendo caretas,
suando, massageando-se com mãos de unhas enegrecidas. Os lençóis
fedem, mas o menino continua sentado na cama. Ele quis ficar perto do inválido
cujas partes íntimas e axilas estavam cheias de feridas em forma de bulbo
provocadas pela peste. O homem era o seu pai e estava moribundo. Na cama ao
lado estava o avô do menino. O velho afogava-se a cada respiração, agitando o
peito estreito. A transpiração brilhava na sua barba grisalha. Riachos de suor tremeluziam
entre as costelas salientes do torso arfante. Os vergões putrefactos da peste transbordavam-lhe
das axilas como sanguessugas. A urina sanguinolenta infiltrava-se no colchão. O
seu rosto tremia de vergonha sob o pálido raio de sol que se infiltrava por uma
fresta da veneziana. A voz do seu pai. Será que a esqueceria? Ele sabia que
sempre se lembraria destas palavras: Michele, porque estás aqui? Mas será que
se lembraria do tom com que foram pronunciadas? Um baixo profundo, deformado e
dissecado pela fornalha da Peste Negra até soar como o murmúrio inútil de um
homem sufocado por um bocado de areia. Por quê? Para lhe fazer companhia, pai.
As suas próprias palavras. Depois que ficou mais velho e sozinho, lembrava-se
delas como a cadência de uma melodia inelutável. Perdido e inocente, ele a
ouvia ressoando no seu cérebro. Ah, mas nunca na garganta. Aquela voz, a que
soaria se ele abrisse a boca como adulto, havia sido privada de toda inocência.
Vai, meu menino. Vai buscar o..., disse o pai ofegante, virando-se para o lado
e tremendo. Ele ergueu os joelhos. O ar estava impregnado do cheiro da cal e do
enxofre que afugentariam a doença, como afirmou a sua mãe. Fazia coçar o nariz
e os pulmões do menino. E o cheiro o fazia espirrar. O pai ergueu a cabeça, num
movimento mais rápido que qualquer outro que havia feito desde que a infecção o
acometera. O rosto do homem contraiu-se aterrorizado. Um espirro era o primeiro
sintoma. O menino virou-se rapidamente e lançou-lhe um sorriso tranquilizador. A
cabeça do pai tombou como se a expressão do filho a tivesse seccionado dos ombros.
Ele tornou a mergulhar nos seus tormentos. O menino também ficou a pensar no espirro
e levou o braço fino e pálido até o cadarço das suas calças de chita para
apalpar as virilhas. Nenhum inchaço, nenhum caroço. O cheiro de enxofre
retornou, e ele percebeu que havia segurado a respiração. O avô estremeceu, com
os olhos voltados para cima, brancos e cegos. Ele abriu mão da sua visão em
favor da luz diminuta que chegava ao interior de seu crânio, de modo que um
espírito refinado demais para a percepção humana pudesse revelar-se para ele.
Quando as pupilas baixaram, estavam fixas e cegas, e o avô do menino ficou
imóvel. As vias lacrimais do pai estavam secas devido ao vinagre com que ele
tentara afastar a peste; as lágrimas não desceriam por elas. Ele bateu na
cabeça com os punhos como se as lágrimas fossem apenas obstinadas, acabando por
ceder, como um jumento, ao castigo. O menino ficou com eles durante horas. O
pai continuava deitado ao lado do velho morto, murmurando palavras incoerentes devido
à febre. Nessa noite, ele queixou-se de que a cama estava molhada e quente,
deslizando para o chão e olhando para o negrume da noite. O menino ficou ao seu
lado. Tu és jovem demais, Michele, gaguejou ele. Jovem demais para presenciar
isto. A princípio o menino achou que ele queria dizer que uma criança de seis
anos não deveria presenciar a partida
do pai, o que lhe provocou um soluço, pois já pressentia como as coisas seriam
sem ele. Então voltou-se na direcção do olhar do pai. Com os olhos oblíquos e
palpitando, percebeu que o pai estava encarando o rosto da Morte. O menino nada
conseguiu distinguir na escuridão. O pai abriu a boca para explicar o que estava
vendo, mas sua mandíbula tombou e o seu peso se pressionou contra o menino. Este
agarrou o cabelo revolto do pai para que a sua cabeça não chocasse contra o
chão. O menino baixou o olhar para o morto. A sua testa contraiu-se de piedade
acima dos olhos brandos. Mas a escuridão chamou-o. Ele viu alguma coisa movendo-se
nela. O arrebatamento de uma vida e a súbita iluminação que baixa sobre os que
se juntam à morte. O que padece de uma doença ou do sacrifício voluntário. O
assassino e a sua vítima. Observe a
escuridão, pensou ele. O que se
materializa da sombra? O que surge quando se olham as coisas pretensamente
ocultas? Continue a olhar e um dia você verá a sua forma. O seu olhar vai criar
uma luz que penetra no mistério. Não é mesmo, pai?» In Matt Rees, Caravaggio,
tradução de Valter Siqueira, 2012, Novo Século Editora, 2014, ISBN 978-854-280-209-2.
Cortesia
NSéculoE/JDACT