segunda-feira, 7 de março de 2016

A Loba de França. 1323-1328. Maurice Druon. «Quem está contigo? Ogle. Diz-lhe que pegue numa maça, numa cunha, numa alavanca, e façam saltar a pedra. Vou com ele e volto já. Os dois homens afastaram-se»

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«(…) É tolice infantil dar importância a tal coisa, dizia consigo mesmo Rogério, o Jovem. Vou mas é preparar-me. A hora aproxima-se. Contudo, sentia-se dominado por um mau pressentimento. O estranho silêncio que há instantes se instalara na Torre veio distraí-lo dos seus pensamentos. Do refeitório já não vinha qualquer barulho. As vozes dos bebedores deixaram de se ouvir, bem como o barulho dos pratos e dos pichéis. O único ruído que chegava à cela era o latido de um cão algures nos jardins e o grito distante de um marinheiro no Tamisa… Teria a conjura de Alspaye sido descoberta? Seria o silêncio na fortaleza o resultado do estupor que responde invariavelmente à descoberta das grandes traições? Com o rosto encostado às grades, o prisioneiro continha a respiração e procurava distinguir o que se passava nas sombras, bem como os mais insignificantes ruídos. Um besteiro atravessou o pátio com passo incerto, foi vomitar contra um muro, deixou-se cair no chão e já, não se levantou. Mortimer conseguia distinguir a sua forma imóvel na erva. As primeiras estrelas começavam a surgir no céu. Seria uma noite de luar. Mais dois soldados saíram do refeitório agarrados ao ventre e vieram cair junto de uma árvore. A bebedeira que traziam não era vulgar. Atingia os homens como o golpe de um bastão. Mortimer de Wigmore procurou as botas às apalpadelas, num canto da cela, e enfiou-as. Não teve dificuldade em fazê-lo, uma vez que perdera muito peso. Que estás a fazer, Rogério?, perguntou Mortimer Chirk. Estou a preparar-me, tio. Está quase na hora. O nosso amigo Alspaye parece ter feito as coisas como deve ser. A Torre afigura-se morta. É verdade que não nos trouxeram a segunda refeição, observou o velho lorde com uma ponta de inquietação. Rogério Mortimer enfiou a camisa nas bragas e apertou o cinturão à volta da cota de malha. A sua roupa estava velha, esfarrapada, uma vez que nos últimos dezoito meses lhe tinham recusado qualquer outra. Continuava a usar o uniforme de combate, tal como o haviam aprisionado quando lhe tiraram a armadura amolgada, ferindo-lhe o lábio inferior com a babeira. Se conseguires, ficarei só, e será sobre mim que se vingarão disse ainda lorde Chirk.
Havia muito de egoísmo na vã obstinação do velho em evitar que o sobrinho se evadisse. Escutai, tio. Vem aí alguém. Desta vez levantai-vos. Os passos aproximavam-se ecoando nas lajes de pedra. Uma voz chamou: Senhor! És tu, Alspaye? Sim, lorde Mortimer, mas não tenho a chave. O vosso carcereiro, com a bebedeira, perdeu a bolsa e agora, no estado em que se encontra, ninguém consegue nada dele. Já procurei por toda a parte. Do catre onde descansava lorde Chirk veio um risinho de troça. O jovem Mortimer desabafou com um palavrão. Estaria Alspaye a mentir? Teria ficado com medo à última hora? Mas nesse caso porque viera? Ou tratar-se-ia de um acaso absurdo, um desses acasos que o prisioneiro toda a tarde se esforçara por imaginar e que acabara por se materializar daquela forma? Quanto tempo temos? Só daqui a uma boa meia hora é que as sentinelas devem notar alguma coisa. Também beberam muito antes de começarem o turno de guarda. Quem está contigo? Ogle. Diz-lhe que pegue numa maça, numa cunha, numa alavanca, e façam saltar a pedra. Vou com ele e volto já. Os dois homens afastaram-se. Rogério Mortimer media o tempo pelas batidas do próprio coração. Uma chave perdida! E agora bastava que uma sentinela, por uma razão qualquer, abandonasse o posto para que tudo falhasse... O próprio lorde Chirk aguardava ansiosamente em silêncio. A sua respiração oprimida ouvia-se ao fundo do calabouço. Em breve um raio de luz passou por baixo da porta. Alspaye regressara com o barbeiro, que trazia a candeia e as ferramentas. Os dois atiraram-se à pedra em que a lingueta penetrava mais de duas polegadas. Procuravam não fazer barulho, mas todos tinham a impressão que o eco se espalhava por toda a fortaleza. As lascas de pedra caíam no chão. Finalmente a ombreira cedeu e a porta abriu-se. Depressa, lorde Mortimer, disse Alspaye. O seu rosto rosado, iluminado pela candeia, estava coberto de suor. As mãos tremiam-lhe. Rogério Mortimer Wigmore aproximou-se do tio e debruçou-se sobre ele. Não, meu rapaz. Vai tu sozinho, disse Mortimer Chirk. Tens de conseguir. Que Deus te proteja. E não queiras mal à minha velhice». In Maurice Druon, Os Reis Malditos, A Loba de França, 1965, tradução de Helena Ramos, Círculo de Leitores, 2006, ISBN 978-972-42-3862-3.

Cortesia de CLeitores/JDACT