domingo, 13 de março de 2016

Camões. A Infanta dona Maria. De Volta de Ceuta. José Maria Rodrigues. «Como se não ririam dos desastres amorosos do apaixonado poeta os seus inimigos litterarios, os que o apodavam de rústico Mapalio, de pomposo Chérilo…»

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De Volta de Ceuta
«(…)
Amor, com a esperança já perdida,
teu soberano templo visitei;
por sinal do naufrágio que passei,
em lugar dos vestidos, pus a vida.

Que mais queres de mi, pois destruida
me tens a gloria toda que alcancei?
Não cuides de render-me, que não sei
tornar a entrar-me onde não ha saída.

Vês aqui a vida e a alma e a esperança,
doces despojos de meu bem passado,
em quanto o quis aquella que eu adoro.

Nelles podes tomar de mi vingança;
e, se te queres inda mais vingado,
contenta-te co as lagrimas que choro.
(Soneto 50).

Pensamentos, que agora novamente
cuidados vãos em mim resuscitais,
dizei-me: e ainda vos não contentais
de ter, a quem vos tem, tão descontente?

Que phantasia é esta, que presente
cada hora ante os olhos me mostrais?
Com uns sonhos tão vãos inda tentais
quem, nem por sonhos, póde ser contente?

Vejo-vos, pensamentos, alterados
e não quereis, de esquivos, declarar-me
que é isto, que vos traz tão enleados?

Não me negueis, se andais para negar-me,
porque, se contra mi 'stais levantados,
eu vos ajudarei mesmo a matar-me.
(Soneto 93).

Pois se nem mesmo em versos que se occupam ex professo da menina dos olhos verdes, Camões deixa de se referir aos seus passados amores!

Passado já algum tempo que os amores
de Almeno, por seu mal, eram passados,
porque nunca Amor cumpre o que promette,
entre uns verdes ulmeiros apartado,
regando por o campo as brancas flores,
em lagrimas cansadas se derrete,
quando a linda pastora, que compete
co monte em aspereza,
co prado em gentileza,
por quem o pastor triste endoudecia,
por a praia do Tejo discorria
a lavar a beatilha e o trançado.
O sol já consentia
que saísse da sombra o manso gado.

Já acordado daquelle pensamento,
que tão desacordado sempre o teve, (ver nota)
viu por acerto o bem que incerto tinha;
e porque, donde o amor a mais se atreve,
alli mais enfraquece o entendimento,
não lhe soube dizer o que convinha.
(Egloga 3.ª est. 1-2).

NOTA: Relêa-se o bellissimo soneto 279, que começa:
Doce sonho, suave e soberano.
se por mais longo tempo me durára!
Ah! Quem de sonho tal nunca acordara,
pois havia de ver tal desengano!

Pois se até ao invocar a musa inspiradora para o poema épico que vai emprehender, se presénte que o som vem d'uma parte, mas que a pancada é em outra!

Em vós tenho Helicon, tenho Pégaso;
em vós tenho Calliope e Thalia
e as outras sete irmãs, co fero Marte.
Em vós deixou Minerva sua valia;
em vós estão os sonhos do Parnaso;
das Pierides em vós se encerra a arte.
Com qualquer pouca parte,
senhora, que me deis de ajuda vossa,
podeis fazer que eu possa
escurecer ao sol resplandecente;
podeis fazer que a gente
em mi do grão poder vosso se espante
e que vossos louvores sempre cante.

Podeis fazer que cresça de hora em hora
o nome Lusitano, e faça inveja
a Esmirna, que de Homero se engrandece.
Podeis fazer também que o mundo veja
soar na ruda frauta o que a sonora
cithara Mantuana só merece.
(Egloga 4.ª, est. 1.ª e 2.ª)

Como já fica dicto, esta egloga foi dirigida a dona Francisca de Aragão. Na egloga 5.ª, escripta na mesma occasião, e bem assim no soneto 190, allude também Camões á projectada epopea. Em Ceuta ainda não pensava nella, como se infere da epistola 1.ª, est. 23-35, e se vê do soneto 267, manifestamente contemporâneo desta epistola, e dirigido pelo poeta a um seu admirador, que também fazia versos:

Se a fortuna inquieta e mal olhada,
que a justa lei do ceu comsigo infama,
a vida quieta, que ella mais desama,
me concedêra, honesta e repousada.

Pudera ser que a Musa, alevantada
com luz de mais ardente e viva flamma,
fizera ao Tejo, lá na pátria cama,
adormecer ao som da lyra amada.

Porém, pois o destino trabalhoso,
que me escurece a Musa fraca e lassa,
louvor de tanto preço não sustenta,

a vossa, de louvar-me pouco escassa,
outro sogeito busque valeroso,
tal qual em vós ao mundo se apresenta.

Forçado a desistir dos seus altos pensamentos, não tendo podido conseguir que a menina dos olhos verdes tornasse a olhar para elle, ferido no coração e no amor próprio, o poeta viu-se, com vergonha sua, fabula da gente, começou a servir de assumpto á maledicência.

Vós, que escuitais em rimas derramado
dos suspiros o som, que me alentava
na juvenil idade, quando andava
em outro em parte do que sou mudado,

sabei que busca só, do já cantado
no tempo em que eu temia ou esperava,
de quem o mal provou, que eu tanto amava,
piedade, e não perdão, o meu cuidado.

Pois vejo que tamanho sentimento
só me rendeu ser fabula da gente
(do que comigo mesmo me envergonho),

sirva de exemplo claro meu tormento,
com que todos conheçam claramente
que quanto ao mundo apraz é breve sonho.
(Soneto 101)

É certo que este soneto é, por assim dizer, uma tradução do 1.º soneto de Petrarca; mas não se segue d'ahi que nelle se não encontrem elementos autobiographicos do nosso poeta. Reproduzo o soneto do poeta italiano, porque é um elemento de interpretação para o de Camões.

Voi ch'ascoltate in rime sparse il suono
di quei sospiri ond'io nudriva il core
in sul mio primo giovenile errore,
quand'era in parte altr'uom da quel ch'i'sono;

Del vario stile in ch'io piango e ragiono
fra le vane speranze e'l van dolore,
ove sia chi per prova intenda amore,
spero trovar pietà, non che perdono.

Ma ben veggi'or si come ai popol tutto
favola fui gran tempo: onde sovente
di me medesmo meço mi vergogno:

e dei mio vaneggiar vergogna è'l frutto,
e '1 pentirse, e '1 conoscer chiaramente
che quanto piace ai mondo è breve sogno.

Direi de passagem que Leopardi explica assim o pietà, non che perdono do v. 8: non solamente perdono, ma anche compassione.

Como se não ririam dos desastres amorosos do apaixonado poeta os seus inimigos litterarios, os que o apodavam de rústico Mapalio, de pomposo Chérilo; os que o tratavam de ignorante, de mau poeta, cujos versos não eram caballinos, antes pareciam de cavallo? Como não deviam irritar o brioso e destemido mancebo, que tinha a consciência do que valia como poeta e que nunca deixou ver as solas dos pés, quando aggredia ou era aggredido, como não deviam irritá-lo, digo, essas más línguas, peores tenções, damnadas vontades, nascidas de pura inveja de verem su amada yedra de si arrancada y en otro muro asida (ver nota), essas aamizades mais brandas que cera, que se accendiam em ódios que disparavam lume que lhe deitava mais pingos na fama que nos couros de um leilão? (ver nota)

NOTA:
No ay coraçon que baste,
aunque fuesse de piedra,
viendo mi amada yedra,
de mi arrancada, en otro muro asida.
(Garcilasso, eploga 1ª).

As palavras do lyrico castelhano applica-as Camões manifestamente aos que lhe envejavam a gloria litteraria;
Carta 1ª (escripta da India). Estou convencido de que entre as amisades de que falla o poeta se contava a de Andrade Caminha, o mal succedido cortejador de dona Francisca de Aragão».

In José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT