domingo, 20 de março de 2016

O Cego de Sevilha. Robert Wilson. «A tentar ver. Mas antes precisa olhar. Não se pode ver sem olhar, disse-lhe a voz, devagar ao ouvido. A luz do play piscava vermelha no meio da escuridão»

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«É semana Santa em Sevilha, a semana da Páscoa de paixão e procissões. Um empresário de renome é encontrado atado, amordaçado e morto em frente da sua televisão. As feridas autoinfligidas deixam perceber a luta que travou para evitar o horror das imagens que foi forçado a ver. Quando confrontado com esta macabra cena, o habitualmente desapaixonado detective de homicídios Javier Falcón sente um medo inexplicável. O que podia ser tão terrível? A investigação da vida turbulenta da vítima arrasta Falcón através do seu passado e dos misteriosos diários do seu falecido pai, um artista mundialmente conhecido. Revelações dolorosas agitam a memória de Falcón e mais assassinatos ocorrem, impelindo-o para a revelação da terrífica verdade.
Tens de olhar, disse a voz. Mas ele não era capaz. Era precisamente quem não podia olhar para aquilo, porque ia desencadear uma grande actividade naquela parte do cérebro, a que aparece em vermelho-vivo nas tomografias que se fazem enquanto se dorme, naquele túnel do labirinto do cérebro a que os leigos chamariam da imaginação desenfreada. Era uma zona de perigo, que precisava ser bem fechada, pregada, acorrentada, trancada a cadeado e a chave atirada no lago mais profundo. Era o beco onde a sua constituição de homem do campo, de ossos largos e articulações fortes, ficava reduzida à frágil nudez de um adolescente, de cara enfiada no conforto limitado, duro e escuro de um canto, com as pernas e as nádegas assadas por se sentar na urina da sua incontinência. Não ia olhar. Não era capaz. O som vindo da televisão voltou a um filme antigo. Ouvia as vozes dobradas. Sim, para isso podia olhar. Era capaz de olhar para James Cagney falando espanhol, com os lábios dizendo palavras que não correspondiam ao som. A fita zunia no leitor de vídeo, à medida que ia sendo rebobinada, e deu um estalido ao chegar no princípio. Sentiu se insinuar um horizonte no fundo da sua cabeça. Náusea? Ou pior? O maremoto do passado a avançar. A garganta apertou-se, os lábios tremeram, uma turbação afectou o espanhol transviado de James Cagney. Enrolou os dedos dos pés descalços, agarrou-se aos braços da cadeira, com os pulsos já cortados pelo cabo que os imobilizava. Os olhos marejaram e deixaram tudo indistinto. Lágrimas na hora de ir deitar, disse a voz. Deitar? O cérebro esgrimiu com esse conceito. Deu uma tossidela abafada, por causa das meias que lhe enchiam a boca. O fim? Era isso que queria dizer ir deitar? O fim era preferível àquilo. Hora de ir para a cama. Uma cama infinita, escura, funda. Peço que volte a tentar... A tentar ver. Mas — Peço que volte a tentar... A tentar ver. Mas antes precisa olhar. Não se pode ver sem olhar, disse-lhe a voz, devagar ao ouvido. A luz do play piscava vermelha no meio da escuridão. Abanou a cabeça e apertou os olhos com força. A voz de James Cagney foi engolida pela gargalhada estrepitosa, o clamor do riso nervoso de um rapazinho. Era uma gargalhada, não era? Meneou a cabeça de um lado para o outro, como se isso pudesse ensurdecer-lhe o som, um som confuso que se recusava a acreditar que fosse de agonia, de uma agonia penetrante. E o soluço final, a impotência, o desfalecimento de quando acabam as cócegas... Ou seria a tortura? O soluçar. O fôlego arquejante. A recuperação após a dor. Não está a olhar, disse a voz, zangada. A cadeira balançou, numa tentativa de se atirar para longe do ecrã, afastando-se do som perfurante. Voltou o perfeito staccato espanhol de James Cagney e o som da rebobinagem, a aceleração até ao baque surdo da fita a chegar ao fim. Eu tenho-me esforçado, disse a voz. Eu estou sendo paciente e..., razoável. Razoável? Isto é razoável? Atar-me pés e mãos à cadeira, enfiar as minhas meias malcheirosas dentro da boca. Forçar-me a ver isto...,oh..., isto... Uma pausa. O impropério resmungado atrás de si. Lenços de papel sacados da caixa em cima da secretária. De novo aquele cheiro no quarto. Lembrava-se dele. A sombra negra vinda na sua direcção, não num farrapo, mas em lenços de papel. O cheiro e o que ele significava. Escuridão. Adorável escuridão. Dá-ma. Prefiro-a a isto. O forte cheiro característico do clorofórmio atirou-o outra vez para o espaço». In Robert Wilson, O Cego de Sevilha, 2003, tradução de Ana Pires e Pedro Pla, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2004, ISBN 978-972-202-615-5.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT