sexta-feira, 11 de março de 2016

Alma. Manuel Alegre. «O culto da República era, assim, uma forma de religião. Creio que para minha avó não havia grande diferença entre a devoção a Nossa Senhora, o culto da República e a fidelidade cega à memória do meu avô»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Era dia de comício da oposição em Alma, presidido por minha avó materna, Beatriz, em representação de meu avô Geraldo Pais, chefe da Carbonária e fundador da República. O falecido tinha sido íntimo de Afonso Costa e era ainda a referência principal da tribo reviralhista. A minha avó, que tinha um solar perto de Viseu e saíra de uma família de tradição conservadora, levava muito a sério o seu papel de viúva revolucionária. Os republicanos do distrito de Aveiro vinham regularmente a Alma prestar-lhe contas e pedir-lhe conselhos. Tanto quanto me recordo, era sempre a que defendia as soluções mais radicais, como, por exemplo, citando o bispo Santo Isidoro de Sevilha, matar o tirano. Os republicanos acenavam silenciosamente com a cabeça e por vezes entreolhavam-se, um pouco aflitos. A minha avó sentava-me ao pé dela e de certo modo eu era tratado como príncipe herdeiro. Os velhos republicanos manifestavam-me um carinho e uma atenção que era quase uma forma de respeito. Alguns, quando me encontravam no Jardim Novo, na margem direita do rio Alma, perguntavam-me baixinho: Então, como é que se diz? E eu murmurava-lhes ao ouvido: Viva a República. O que era entendido como sinal mais que certo de que a sucessão estava por assim dizer assegurada. Pensando bem, eu era uma espécie de ungido, trazia em mim a graça da República e o sinal dos eleitos. Tal era ainda a força do meu avô materno. Os correligionários contavam com orgulho as suas façanhas. Eu ouvia fascinado essas histórias. Gostava sobretudo da reconquista de Santarém aos monárquicos. Nomeado governador-civil daquele distrito, Geraldo Pais exercia há uns meses o cargo quando, ausente na capital, recebeu a notícia de que a cidade fora tomada pelos monárquicos. Partiu imediatamente para Santarém. Quando chegou ao palácio foi interceptado por um oficial que lhe deu voz de prisão. Preso está o senhor, respondeu o Governador. O outro pôs-se em sentido, o meu avô desarmou-o e levantou-o ao ar, com uma só mão. A Companhia, espantada, apresentou armas a Geraldo Pais, meu avô, que recuperou assim Santarém para a República. Eu gostava desta história e sentia uma íntima satisfação em ser neto de um homem capaz de vencer sozinho um exército inimigo. Não era por acaso que lhe chamavam Geraldo das Forças. A fama já vinha dos tempos de Coimbra e do dia em que, à frente da banda de música de Alma, ele pusera em debandada, manejando habilmente o pau, a investida dos adeptos de várias bandas rivais. Lembro-me de o ver esmagar nozes com os dedos. Dizia-se, também, que em certas sessões mais agitadas, partia a murro a sua carteira de deputado em São Bento. Os seus adversários da vila acusavam-no de ter mandado pôr uma bomba no lugar das aparições. A minha avó negava com veemência, tanto mais que era uma devota de Nossa Senhora de Fátima, junto de cuja imagem mantinha sempre uma vela acesa. Mas os inimigos políticos não desarmavam e diziam que, sendo ele deputado por Aveiro, não se vislumbrava por que outra razão teria sido nomeado governador-civil de Santarém. Fosse como fosse, o certo é que a lenda de Geraldo Pais, para o bem e para o mal, não deixava de crescer, alimentada com fervor pela minha avó, os seus correlegionários e os próprios inimigos. O culto da República era, assim, uma forma de religião. Creio que para minha avó não havia grande diferença entre a devoção a Nossa Senhora, o culto da República e a fidelidade cega à memória do meu avô. Tudo fazia parte do mesmo sentimento de fé e da mesma capacidade de entrega e dedicação. Na qual, evidentemente, eu tinha um lugar destacado. Para a minha avó eu não era só o seu neto: era, sobretudo, a reincarnação do seu marido. Tudo isto se passava numa casa em que o chefe de família, meu pai, Lourenço de Faria, era monárquico. Liberal, gostava ele de sublinhar. E então, quase a medo, às vezes clandestinamente, falava daqueles seus antepassados que tinham participado na revolta de Aveiro contra o monarca Miguel. O bisavô conseguira fugir para o Brasil, mas o irmão, seu tio bisavô, fora um dos enforcados e decapitados da Praça Nova, no Porto. Mártires da liberdade, os seus nomes estavam escritos no monumento a Pedro IV. Mas eu, confesso, ao princípio não ligava muito a esta história. Talvez porque nela não entrasse a palavra República, que para mim tinha um significado mágico. Talvez porque meu pai não pudesse ou não quisesse competir com a influência da minha avó. Que, diga-se desde já, era completada e reforçada pela acção de minha mãe, Mariana, para quem o meu avô era uma outra forma de Deus. Ou talvez o único deus a que toda a vida ela prestou culto. De modo que eu estava praticamente condenado a ser republicano e revolucionário. Só que naquele dia não havia apenas o tão esperado comício da oposição. À mesma hora, o Beira-Rio jogava contra o Vista Alegre. Por isso de nada serviram os rogos de minha avó e os ralhos de minha mãe. Nada me fazia ceder. E por nada deste mundo, muito menos por causa de um comício, eu estava disposto a perder o jogo no velho campo de São Cristóvão. Meu pai, menos por falta de coragem do que por filosofia de vida, não estava para lhes fazer frente. Mas nesse dia senti que secretamente admirava a minha resistência. E às duas por três, perante tal insistência de uma e de outra, dei por mim a perguntar-me porque raio é que, afinal, eu não havia de ser, também, monárquico? Meu pai ouvia, calado. De quando em vez piscava-me o olho. E a minha avó porque tens de ir, e a minha mãe era o que faltava que não. Até que subitamente meu pai explodiu: Não vai, não quer ir não vai, ele é meu filho e quem decide sou eu. Vamos os dois ao jogo. E fomos». In Manuel Alegre, Alma, Publicações dom Quixote, 1995, ISBN 978-972-202-668-0.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT