«No ano
do Senhor de 1345, no fim do mês de Março, os planetas Saturno, Júpiter e Marte
entraram em conjunção entre o 15.º e o 17.º graus do signo do Aquário, dando
origem a um acontecimento astronómico que inflamou os corações e as mentes dos sábios
da época. Não é fácil definir em que medida os movimentos dos corpos celestes influenciaram
os acontecimentos humanos, mas, de facto, nos anos que se seguiram, a Europa foi
atingida pela guerra, pela fome e pela peste. Todo o Ocidente cristão se tornou
palco de uma dança macabra que despertou o medo do Apocalipse. Nem flagelos dessa
envergadura conseguiram aplacar a sede de verdade, de beleza e de grandes ideais.
Com efeito, foi precisamente nesse terrível momento que uma abadia surgida não longe
do mar viu nascer dentro de si um dos ciclos pictóricos mais fascinantes e misteriosos
da Idade Média. Esta é a história dos homens e das mulheres que participaram na
sua realização.
Floresta
de Ferrara, nos limites do burgo de São Jorge. 12 de Abril de 1333
Os
três homens encontraram-se depois do pôr do So1, em grande segredo. Dois deles
chegaram juntos, a cavalo, seguindo o curso do rio Pó, até quase se perderem num
labirinto de vales e de turfeiras. Esperaram entre as árvores, atentos a
qualquer som que proviesse das trevas. A semelhança dos seus vultos e os seus cabelos
ruivos revelavam uma estreita relação de parentesco. No entanto, o mais ve1ho possuía
um olhar tão profundo que se destacaria mesmo no fogo da batalha. Estavam ambos
cobertos por armaduras de peças finamente cinzeladas, sinal de elevada estirpe,
tal como os arreios dos corcéis. O terceiro homem apresentou-se em último lugar,
também a cavalo. Trazia uma capa de cor púrpura e um chapéu de cardeal, mas as luvas
de ferro bem apertadas sobre as rédeas faziam pressentir a presença de uma
loriga sob as vestes. Vossa majestade, vossa alteza, disse, detendo-se sob a copa
de um grande ulmeiro. Que grande honra. Finalmente, dignou lançou o mais novo, expressando-se
também num francês perfeito. Ainda não havia completado dezassete anos, mas
possuía a impetuosidade e o ardor pintados no rosto. Mais uma demora da vossa parte,
monsenhor, e não nos teríeis encontrado. O homem ao seu lado silenciou-o com um
gesto. Perdoai o meu filho, eminência. Entre os seus muitos dotes, carece daquele
que consiste em ter tento na língua. Bem, o príncipe deve ficar ao corrente. Bem,
o príncipe deve ficar ao corrente, respondeu o cardeal, alusivo. Pelo menos a partir
de hoje à noite. Então havei-lo encontrado?, perguntou o homem de armas, baixando
o tom de voz. O homem vestido de púrpura anuiu. Dirigia-se a Ferrara. Os meus soldados
capturaram-no junto da muralha, enquanto preparavam o cerco. Um golpe de sorte.
Assim sendo, não nos convocaram para aqui em vão, exultou o jovem. E diga-me, eminência,
já…, falou? Duvida? Sem dizer mais, o cardeal fez sinal para que o seguissem e avançou
a trote até às árvores. Atravessou um emaranhado de sombras, entre gritos de corujas
e de outros animais nocturnos, até chegar a uma clareira ocupada por homens de armas
e máquinas de assalto. No centro desse espaço, iluminado por archotes, estava um
homem nu, estendido sobre a relva. Os três aproximaram-se dele para o observarem
melhor. Era um monge, a julgar pela ampla tonsura. Jazia numa posição pouco natural,
em cruz, devido às cordas que lhe prendiam os braços e as pernas a quatro cavalos.
Os animais estavam parados, as cordas soltas, mas o rosto do infeliz ainda
parecia alterado por um indizível sofrimento. Os cotovelos e os joelhos, bem como
os ombros e os pulsos, estavam inchados e tumefactos por ter sofrido a acção dos
tirantes muito além do limite da tolerância humana. O cardeal desmontou e inclinou-se
sobre o monge.
Padre
Facio Malaspina, em fuga há três anos. Não se dirigia a ele, mas aos dois
homens de armas que o acompanhavam. Tirou o chapéu, descobrindo uma espessa cabeleira
grisalha, e passou a mão pelo rosto. Sorria. Em fuga por esconder algo tão raro
quanto precioso. Contudo, quando foi capturado, não o tinha consigo. A estas palavras,
o monge foi invadido por um violento tremor e lançou um grito carregado de
ódio. Maldito! Tentou reerguer-se, mas os tendões e músculos já não suportavam o
seu peso. Maldito sejais..., vós e todos os cães de Avinhão!, sibilou. Depois
fechou as pálpebras, esgotado. Não compreendo, interveio o homem de armas, trocando
um olhar com o filho. Se não trazia nada consigo...» In Marcello Simoni, A Abadia dos
Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN
978-989-724-278-6.
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