quarta-feira, 9 de março de 2016

Horto de Incêndio. Al Berto. «… que o dia te seja limpo e para lá da pele constrói o arco de sal a morada eterna, o mar por onde fugirá o etéreo visitante desta noite…»

jdact e wikipedia

Recado
«Ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer, vai por esse campo
de crateras extintas, vai por esse porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo, deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração, ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna, o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira, não esqueças o ouro
o marfim, os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço»


Vestígios
«Noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas, noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras

hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool, pernoita-se

onde se pode, num vocabulário reduzido e
obsessivo, até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir
apesar de tudo
continuamos a repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva, vamos pela febre
dos cedros acima, até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial»
Poemas de Al Berto, in ‘Horto de Incêndio



In Al Berto, Horto de Incêndio, Hablar/Falar de Poesia, nº 1, 1997, Assírio e Alvim, ISBN 978-972-370-410-5.

Cortesia AAlvim/JDACT