terça-feira, 1 de março de 2016

O Século Primeiro depois de Beatriz. Amin Maalouf. «Foi no Cairo que tudo começou, numa estudiosa semana de Fevereiro, há quarenta e quatro anos, até apontei o dia e a hora. Mas de que serve fazer malabarismos com as datas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) E tudo o que observo hoje à minha volta, esse planeta enfezado, soturno, obscurecido, este desfraldar de ódios, essa universal frialdade que tudo envolve como uma nova era glaciar..., não é o fruto de uma genial solução? Contudo o fim do milénio tinha sido grandioso. Uma embriaguês nobre, contagiosa, devastadora, messiânica. Nós acreditávamos todos que a Graça ia tocar pouco a pouco a Terra inteira, que todas as nações poderiam em breve viver na paz, na liberdade, na abundância. Doravante, a História não seria mais escrita pelos generais, pelos ideólogos, pelos déspotas, mas pelos astrofísicos e pelos biólogos. A humanidade saciada só teria como heróis os inventores e os que a divertiam.  Eu próprio nutri durante muito tempo essa esperança. Como todos os da minha geração, eu teria encolhido os ombros se me tivessem predito que tantos progressos morais e técnicos se verificariam reversíveis que tantas vias de comunicação voltariam a fechar-se, que tantos muros poderiam ressurgir, tudo isso por culpa de um mal omnipresente e contudo insuspeitado. Porque odioso logro do destino o nosso sonho se desmantelou? Como chegamos a isso? Por que fui obrigado a abandonar a cidade e toda a vida civil? O que eu queria contar aqui, o mais fielmente, o mais escrupulosamente possível, é a lenta eclosão do flagelo que nos envolve depois dos primeiros anos do novo século, arrastando-nos nessa regressão sem precedente, parece-me, tanto pela sua amplitude como pela sua natureza. Apesar do terror ambiente, esforçar-me-ei por escrever até ao fim com serenidade. Neste instante, sinto-me ao abrigo do meu antro de alta montanha, e a minha mão não treme nada por cima deste velho repertório ainda virgem a que vou confiar os meus fragmentos de verdade. Encontro até, na evocação de certas imagens do passado, uma alegria em que a minha pessoa se compraz, a ponto de esquecer por momentos o drama que presumidamente vou relatar. Não é uma das virtudes da escrita deitar horizontalmente na mesma folha horizontal o fútil e o excepcional? Tudo readquire num livro a espessura negligenciável da tinta achatada. Mas basta de preâmbulos! Eu tinha prometido a mim mesmo cingir-me aos factos.
Foi no Cairo que tudo começou, numa estudiosa semana de Fevereiro, há quarenta e quatro anos, até apontei o dia e a hora. Mas de que serve fazer malabarismos com as datas, basta dizer que era na vizinhança do ano com três zeros. Eu escrevi começou? Começou para mim, queria eu dizer; os historiadores fazem remontar a génese do drama muito mais atrás no tempo. Mas eu coloco-me aqui no estrito ponto de vista de testemunha: para mim a coisa nasceu quando a encontrei pela primeira vez. Esta entrada na matéria pode deixar crer que eu pertenço à raça dos grandes viajantes, um encontro nas margens do Nilo, uma escapadela até ao Amazonas ou ao Brahmaputra... Muito pelo contrário. Eu passei a maior parte da minha vida à minha mesa de trabalho, viajei sobretudo entre o meu jardim e o meu laboratório. O que não me causa, de resto, a mínima pena; de cada vez que me colava ao olhinho do microscópio era para mim o embarque. E quando me acontecia tomar o avião deveras, era também, quase sempre, com a finalidade de observar um êxito de mais de perto. Essa viagem ao Egipto, dizia respeito ao escaravelho. Mas a óptica não me era habitual. Em geral, quando participava em qualquer seminário, tratava-se apenas de agricultura ou de epidemia. Convidados de honra, a filoxera ou a Propillia japonica, o anófeles ou a mosca tsé-tsé, para as enfadonhas variações sobre um tema velho como a pré-história: os bichos nossos inimigos. O encontro do Cairo prometia ser diferente. A carta com o convite falava, vou citar, de apreciar o lugar do escaravelho na civilização do Egito antigo: arte, religião, mitologia, lendas.
Não dou qualquer novidade a ninguém, presumo, recordando que na época faraónica se venerava o escaravelho como uma divindade. Em particular a espécie conhecida, justamente, sob o nome de escaravelho sagrado, Scarabeus sacer, mas mais geralmente todas as variedades desse digno êxito. Acreditavam-no dotado de virtudes mágicas, e depositário dos grandes mistérios da vida. Ao longo de todos os meus anos de estudo, cada professor o tinha repetido à sua maneira, e logo que obtive o meu próprio laboratório no Museu de História Natural, os meus alunos tiveram direito, também eles, ao estribilho anual, ditirâmbico e apaixonado, sobre o escaravelho. Imagine-se o que pode representar para um especialista de coleópteros saber que Ramsés II se terá prosternado diante de um desses animalejos devoradores de bosta de boi. O culto do escaravelho espalhou-se até bem para além das fronteiras do Egipto, alcançando a Grécia, a Fenícia, a Mesopotâmia; legionários romanos tinham adquirido o hábito de gravar uma silhueta de escaravelho no punho dos seus gládios; e os Etruscos cinzelavam delicadas jóias de ametista com a sua efígie. Para a minha disciplina, repito-o, o escaravelho é uma glória, um título de nobreza. Ia dizer um venerável antepassado, e, muito naturalmente, fiz algumas leituras, algumas investigações a seu respeito, não podia metê-lo no mesmo saco que as baratas do celeiro, os insectos não nasceram todos na mesma bosta. Contudo, por mais aprofundadas que pudessem ter sido as minhas investigações, senti-me imediatamente muito pouco à vontade no seminário do Cairo. Entre os vinte e cinco participantes vindos de oito países, eu era o único incapaz de ler os hieróglifos, incapaz de enumerar os Tutmés ou os Amenófis, era o único que ignorava além disso, o copta sacidico e o copta subakmimico, que ninguém se lembre de me perguntar o que é, nunca mais voltei a ouvir essa palavra, mas creio tê-la transcrito correctamente». In Amin Maalouf, O Século Primeiro depois de Beatriz, 1992, tradução de Daniel Gonçalves, Difel (Difusão Editorial), 2008, ISBN 978-972-290-919-8.

Cortesia de Difel/JDACT