O signo da peregrinação
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Foi percorrendo esta rota que, segundo a tradição, no século IX, um eremita de
nome Pelayo, seguindo uma chuva de estrelas até um campo, o campo de la
estrella, daí a origem da palavra Compostela, teria encontrado o túmulo
onde estaria depositado o corpo do apóstolo Tiago, mandado decapitar pelo rei
judeu Herodes Agripa I, em Jerusalém, no ano 44 da era cristã. Acreditavam que
antes de ser martirizado São Tiago teria pregado o evangelho na Península
Ibérica, sendo este o motivo de ter sido conduzido por anjos, numa barca, para
ali ser enterrado. Fosse como fosse, em 1078, Afonso VI, então rei de Leão e
Castela, mandou construir uma basílica sobre o túmulo para receber o número
cada vez maior de viajantes que viam visitá-lo. O símbolo de quem percorria o
Caminho de Santiago era uma concha e o seu caminhante era chamado de peregrino.
O primeiro peregrino registrado foi um clérigo chamado Gotescale, bispo de Puy,
em 951. Depois dele incontáveis personagens, anónimos e célebres, dos três
extractos sociais do medievo, religiosos, nobres e camponeses, de Francisco de
Assis à Isabel de Castela, percorreram a rota, alcunhada de Via-láctea.
Em
1139 foi redigido, provavelmente por um monge francês chamado Aimery Picaud, o Guia
do Peregrino de Santiago de Compostela. Neste pequeno livro eram indicados
os melhores itinerários através da França, de acordo com o ponto de partida do
crente, com referências importantes sobre onde e como conseguir alojamento e
alimentação nos mosteiros e vilas que povoavam o percurso dos Pirenéus à
Galícia. A partir do século XIV passou a ser entregue um certificado de peregrinação
aqueles que concluíam o caminho com êxito. Documento que constituía motivo de
orgulho para o seu portador. Na Galícia, uma das mais verdes regiões
espanholas, a luta entre mouros e cristãos foi extremamente violenta.
Principalmente nos primeiros séculos da Reconquista. O valor de seus prados
férteis, ainda que montanhosos, não podia ser desprezado pelos invasores
islâmicos. Ao mesmo tempo a devoção popular em torno das peregrinações a
Santiago de Compostela tornou-se muito intensa. A tal ponto que passou a ser
capitalizada pela Igreja e pela nobreza espanhola, já nos tempos do rei asturiano
Afonso II, chamado o Casto, que
reinou de 791 a 842, como forma de unir os cristãos do norte da Península
Ibérica em torno de um símbolo de resistência comum.
O
fomento da fé no Caminho de Santiago alimentou um bem sucedido esforço de pacificação
da região galega. Mas a importância-culto foi muito além, alcançando o ápice da
popularidade no século XII. Num documento de 834, catalogado no Tombo A do
arquivo da Catedral de Santiago, o apóstolo é designado de Patronum et Dominum
de totius Hispaniae, ou seja: Patrono e Senhor de Toda Espanha. São Tiago
tornou-se o patrono da luta contra o avanço muçulmano. A iconografia medieval
luso-hispânica é prolifera em representações de São Tiago, com a cabeça
miraculosamente colada ao pescoço, combatendo mouros de traços raciais
exagerados ao ponto da deformidade, montando um fogoso garanhão, com uma espada
ensanguentada na mão e uma concha presa ao chapéu. A disseminação desta imagem
de guerreiro cristão incansável fez com que o apóstolo se tornasse conhecido popularmente
como Sant’ago Matamouros.
A
defesa do Caminho de Santiago inspirou a acção de algumas das ordens militares
surgidas com as cruzadas e a Reconquista. Entre as mais relevantes estavam a
Ordem da Calatrava, a Ordem de Alcântara e especialmente, como o nome indica, a
Ordem de Santiago da Espada, confraria monástica / militar de origem leonesa,
criada por Fernando II, em Leão no ano de 1170 e aprovada pelo papa em 1175.
Todas as confrarias citadas surgiram em grande medida sob a influencia do sucesso
do Templo nos reinos espanhóis. Imitavam-na, inclusive na sua função original. As
suas propriedades, de hospícios à praças fortes, podiam ser encontradas ao longo
de toda a Via-láctea. Serviam como abrigo e defesa aos peregrinos que cruzavam
a Península Ibérica rumo ao santuário de Compostela. Contudo, a mais longa,
árdua e custosa da trindade das grandes peregrinações medievais não tinha o seu
destino final dentro das fronteiras geográficas da Europa e sim no perigoso e
distante além mar: no Oriente, na árida Palestina. Era a rota até à Terra
Santa. Região sem uma definição territorial precisa, mas que, em termos gerais,
compreendia os lugares por onde, segundo a tradição, Jesus de Nazaré transitou
em vida. Os relatos dos quatro evangelhos canónicos eram o guia, de inquestionável
autoridade. A miscelânea de cenários incluíam desde acidentes geográficos a
núcleos urbanos. Ia das margens do Mar da Galileia e do rio Jordão, do alto do
Morro da Tentação, às cidades como Belém, Nazaré e, acima de todas, Jerusalém. Se
para o homem medieval o respeito por Roma advinha do facto dela ser a cidade
onde residia o papa, Jerusalém por outro lado era a cidade eleita pelo próprio
Deus. Era tida como a sancta civitate, a cidade santa, a cidade
perfeita, contraponto a sujidade da Babilónia, manifestação terrena do modelo
de cidade celeste da filosofia agostiniana. Diversos mapas medievais
localizavam-na simbolicamente no centro do mundo. Cenário da epifania do
Cristo, não eram poucos os que abandonavam as suas vidas mundanas na Europa
para não mais voltar, acreditando que a morte na Jerusalém terrestre era o
caminho mais seguro para a Jerusalém celeste». In Ademir L. Silva, Os Cavaleiros
da Cruz Vermelha, Séculos XII e XIII, Dissertação de Mestrado, Universidade
Federal de Goiás, Faculdade de CHeFilosofia, Goiãnia, 2003.
Cortesia
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