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Partida da ilha Delfina rumo às Índias; de Moçambique, da ilha de
Socotorá e do Mar Vermelho
«(…) Depois de termos estacionado por certo tempo na ilha Delfina,
rumámos para as Índias. Passámos entre a dita ilha e a terra firme de África, e
de longe avistámos as ilhas Mayotte, que não ficam longe de Moçambique. É esta
praça de Moçambique uma das mais importantes que os portugueses possuem para além
do cabo da Boa Esperança. Ali mantêm todo o tempo forte guarnição de tropas. E
visto ser a situação ali mui de vantagem, tal sempre fez inúteis os esforços
que os inimigos desta nação intentaram para da dita praça se assenhorearem. É o
governo de Moçambique de grande monta, e depois da dignidade de vice-rei outro
posto não há mais vantajoso do que aquele; por isso a Coroa de Portugal o
atribui em recompensa dos mais assinalados feitos, sendo ele usualmente um grau
em prol da carreira de vice-rei.
No passado, e ainda hoje, os portugueses têm tirado muito ouro dos
lugares de África vizinhos desta praça, e é muito por mor da abundância do rico
metal que tão disputado se vê este governo. Ao longo da costa os portugueses
têm ainda algumas praças, como Mombaça e outras mais, cujos governos dependem
do de Moçambique; em todas elas se faz grande tráfico de marfim, de âmbar
pardo, de pó de ouro, e até de ouro em barra; em troca, dão arroz, panos,
fazendas de seda e outras mais mercancias que mandam vir das Índias. Passámos depois
perto da ilha de Socotorá, de onde vem a goma a que chamamos Aloes Socotrin ou Socotrin; fica perto do Mar Roxo, e é povoada de árabes. As suas
terras não são mui férteis, sendo de tâmaras o comum sustento dos habitantes; o
arroz e o trigo, nutrimento dos mais ricos, vêm-lhes das Índias.
O bojo arábico, ou Mar Roxo, é um golfo que separa a Ásia da África,
ali se faz avultado negócio por via da quantidade de gomas e drogas medicinais
que a Arábia fornece; porém a devoção que todos os sequazes de Maomé possuem de
visitar o famoso sepulcro do seu profeta, ali faz acorrer ainda mais gente que
o comércio e as riquezas do país. O túmulo é em Meca, e todos quantos para ali
se encaminham com vista a prestar as homenagens de todos os reinos da Índia,
usualmente desembarcam em Moca, considerável cidade da Arábia, seguindo depois
viagem até ao lugar aonde os chama a devoção. Não tivemos aventura alguma que
mereça ser narrada, desde a ilha Delfina até às Índias, e apesar de pequenas
tormentas que nos atingiram, ditosamente chegámos ao porto de Soali.
Em que se narra o que em Surate há de mais assinalável
Surate, que fica só a quatro léguas de Soali, é uma cidade mais ou
menos como Orleães, porém muito mais povoada, sendo uma das mais importantes do
Império do Mogol, por via do grande comércio que ali se faz e da afluência, não
só de todos os povos da Índia, mas ainda de todas as nações da Europa. É
banhada por um mui formoso rio, no qual penetram as naus a calafetar. Fica a
três léguas do mar, tem favorável situação, e sendo como é edificada numa vasta
planura, nada há que a possa combater; outrora não estava ela cercada de
muralhas, e isso a expôs ao saque dos príncipes vizinhos, que nela muitas vezes
se apoderaram de grandíssimas riquezas. Desde que há alguns anos a cercaram de
muralhas, sobre as quais foram aparelhados canhões junto à cidade e à borda de água,
há agora lá uma grande fortaleza onde se mantêm tropas numerosas, mas este
forte nada tem de regular e não poderia resistir por muito tempo, e assim a
cidade, se esta fosse sitiada por uma nação da Europa». In Charles Dellon (1649-1709?),
Relation de L’Inquisition de Goa, 1687, Leyden, Holanda, Narração da Inquisição
de Goa, tradução e notas de Miguel Vicente Abreu (1827-1883), Nova Goa, 1866,
Edições Antígona, Lisboa, 1996, ISBN 972-608-075-4.
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