quinta-feira, 31 de março de 2016

Amantes no 31. Madre Paula. Patrícia Muller. «Fazia a lide da casa e deixava a cozinha para elas. Ainda hoje, sou capaz de arrumar uma sala num ápice. Não o faço mais porque não preciso. No tempo do rei, tinha nove criadas. Hoje resta-me uma»

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«(…) O pai sempre se preocupou com o nosso sustento. Eu e as minhas irmãs devemos-lhe muito. Das memórias mais antigas que tenho, além da cara do pai no dia da morte do avôzinho, com os olhos esgazeados, o rosto transpirado a pedir-nos que nos mantivéssemos sãs, porque a vida dele dependia disso, lembro-me da mãe deitada na cama, comigo em cima a pesar-lhe de novo na barriga, a rir e a agarrar-me nas mãos. Temos de pentear esse cabelo. O cabelo cresceu-me negro e forte, até à cintura. Agora que a idade já avança, noto algumas cãs. Entristece-me. Quando os dias eram difíceis, ele aninhava-se no meu cabelo e ali enrolava tantas horas em silêncio. Às vezes, até adormecia nele. Era o seu lugar preferido. A mãe insistia em pôr-me uma pasta de azeite a cada quinze dias. Não perdi o hábito. Misturo duas colheres do precioso líquido com um ovo inteiro, depois faço-o escorrer nos fios escuros. É uma forma de voltar para perto dela. Tenho poucas memórias do tempo que passámos juntas. Morreu a seguir ao avô. A Luz, a Leocádia e eu ficámos com as obrigações do lar. Como irmã do meio, tinha metade das tarefas da Luz e o dobro das tarefas da Leocádia. Fazia a lide da casa e deixava a cozinha para elas. Ainda hoje, sou capaz de arrumar uma sala num ápice. Não o faço mais porque não preciso. No tempo do rei, tinha nove criadas. Hoje resta-me uma.
O que nós fomos e o que nós somos.., A Luz queixa-se muito. Ficou amarga. E tudo por minha causa, não a posso culpar. Devolvo-lhe a paciência com que ela me atura. Quem olha de fora só vê o que se vê de fora: duas irmãs velhotas e ranzinzas. As vistas para lá das janelas de casa são distorcidas. Eu e a Luz vivemos juntas desde sempre. Ela é a família que me calhou e a família que eu escolhi. O meu paí era Adrião d’Almeida, ourives como o avô. Herdou a loja-oficina, trabalhava à vista dos fregueses que lá iam buscar as filigranas, os cordões, os corações em ouro. Nunca conseguiu prestígio. As vizinhas invejosas falavam à boca pequena que não era um artesão talentoso. A Luz contou-me que quando a mãe morreu, ele bebeu demasiada sidra e pôs-se a trabalhar todo o ouro que tinha na loja. Fez a peça mais assombrosa que podia. A Luz assegurava que tinha sido um castelo de bonecas dourado, com torres, portas, janelas e ameias.
Um palácio de princesas do nosso tamanho, Paula. Uma ponte levadiça, também em ouro, que sobe e desce a um pátio com a largura dos teus braços. A volta do pátio, num andar de cima, os quartos com toucadores e camas. As camas têm banquetas, tudo em ouro. Cadeiras, também. Tudo pequenino no detalhe glorioso que lhe dá o ouro, acho eu. Ou achava, na altura em que ela ainda sorria. Sorria muito, a minha irmã. Fantasiava com príncipes e aventuras e viagens e vestidos bonitos. Mesmo com a morte da mãe, não deixou de sorrir. Isso só aconteceu quando me viu arrastar-me de desgosto, numa morte que não é do corpo mas do espírito. No convento, acontece muito. A paixão por um homem dá direito a dois caixões: um na terra e outro no céu. Vivíamos em Lisboa, no beco do Sedeiro, rua sempre suja dos despejos das janelas. A casa ficava no andar por cima da loja, tinha paredes grossas de pedra. À noite, junto ao fogo, cantávamos músicas alegres das festas e dos arraiais. Só muitos anos depois é que eu conheceria a ópera italiana (que ele tanto amava). Quem lhe deu a conhecer tal esplendorosa forma de arte foi dona Maria Ana de Áustria, a legítima mulher do meu amor, João Francisco António José Bento Bernardo Bragança, o Magnânimo, quinto da sua linhagem. Com ela julguei disputar o trono. A ele dei a vida. Relembro uma noite, dias após uma formidável briga entre nós, em que João trouxe músicos aos meus aposentos, homens carregados de instrumentos, violas, violinos, violoncelos, baixos e contrabaixos, cordas a desfiar em nome do perdão». In Patrícia Muller, Madre Paula, Edições ASA II, 2014, ISBN 978-989-232-783-9.

Cortesia de ASA/JDACT