«(…) O pai sempre se preocupou
com o nosso sustento. Eu e as minhas irmãs devemos-lhe muito. Das memórias mais
antigas que tenho, além da cara do pai no dia da morte do avôzinho, com os olhos
esgazeados, o rosto transpirado a pedir-nos que nos mantivéssemos sãs, porque a
vida dele dependia disso, lembro-me da mãe deitada na cama, comigo em cima a pesar-lhe
de novo na barriga, a rir e a agarrar-me nas mãos. Temos de pentear esse cabelo.
O cabelo cresceu-me negro e forte, até à cintura. Agora que a idade já avança, noto
algumas cãs. Entristece-me. Quando os dias eram difíceis, ele aninhava-se no meu
cabelo e ali enrolava tantas horas em silêncio. Às vezes, até adormecia nele. Era
o seu lugar preferido. A mãe insistia em pôr-me uma pasta de azeite a cada quinze
dias. Não perdi o hábito. Misturo duas colheres do precioso líquido com um ovo inteiro,
depois faço-o escorrer nos fios escuros. É uma forma de voltar para perto dela.
Tenho poucas memórias do tempo que passámos juntas. Morreu a seguir ao avô. A Luz,
a Leocádia e eu ficámos com as obrigações do lar. Como irmã do meio, tinha metade
das tarefas da Luz e o dobro das tarefas da Leocádia. Fazia a lide da casa e deixava
a cozinha para elas. Ainda hoje, sou capaz de arrumar uma sala num ápice. Não o
faço mais porque não preciso. No tempo do rei, tinha nove criadas. Hoje resta-me
uma.
O que nós fomos e o
que nós somos.., A Luz queixa-se muito. Ficou amarga. E tudo por minha causa, não
a posso culpar. Devolvo-lhe a paciência com que ela me atura. Quem olha de fora
só vê o que se vê de fora: duas irmãs velhotas e ranzinzas. As vistas para lá das
janelas de casa são distorcidas. Eu e a Luz vivemos juntas desde sempre. Ela é a
família que me calhou e a família que eu escolhi. O meu paí era Adrião d’Almeida,
ourives como o avô. Herdou a loja-oficina, trabalhava à vista dos fregueses que
lá iam buscar as filigranas, os cordões, os corações em ouro. Nunca conseguiu
prestígio. As vizinhas invejosas falavam à boca pequena que não era um artesão talentoso.
A Luz contou-me que quando a mãe morreu, ele bebeu demasiada sidra e pôs-se a trabalhar
todo o ouro que tinha na loja. Fez a peça mais assombrosa que podia. A Luz assegurava
que tinha sido um castelo de bonecas dourado, com torres, portas, janelas e ameias.
Um palácio de princesas
do nosso tamanho, Paula. Uma ponte levadiça, também em ouro, que sobe e desce a
um pátio com a largura dos teus braços. A volta do pátio, num andar de cima, os
quartos com toucadores e camas. As camas têm banquetas, tudo em ouro. Cadeiras,
também. Tudo pequenino no detalhe glorioso que lhe dá o ouro, acho eu. Ou achava,
na altura em que ela ainda sorria. Sorria muito, a minha irmã. Fantasiava com
príncipes e aventuras e viagens e vestidos bonitos. Mesmo com a morte da mãe, não
deixou de sorrir. Isso só aconteceu quando me viu arrastar-me de desgosto, numa
morte que não é do corpo mas do espírito. No convento, acontece muito. A paixão
por um homem dá direito a dois caixões: um na terra e outro no céu. Vivíamos em
Lisboa, no beco do Sedeiro, rua sempre suja dos despejos das janelas. A casa ficava
no andar por cima da loja, tinha paredes grossas de pedra. À noite, junto ao fogo,
cantávamos músicas alegres das festas e dos arraiais. Só muitos anos depois é que
eu conheceria a ópera italiana (que ele tanto amava). Quem lhe deu a conhecer tal
esplendorosa forma de arte foi dona Maria Ana de Áustria, a legítima mulher do
meu amor, João Francisco António José Bento Bernardo Bragança, o Magnânimo, quinto da sua linhagem. Com
ela julguei disputar o trono. A ele dei a vida. Relembro uma noite, dias após uma
formidável briga entre nós, em que João trouxe músicos aos meus aposentos, homens
carregados de instrumentos, violas, violinos, violoncelos, baixos e contrabaixos,
cordas a desfiar em nome do perdão». In Patrícia Muller, Madre Paula,
Edições ASA II, 2014, ISBN 978-989-232-783-9.
Cortesia de ASA/JDACT