jdact
e wikipedia
Do Islão
para a América
«Fui
nómade durante toda a minha vida. Sem raízes, tenho viajado pelo mundo. Sempre
que me instalei em algum lugar, fui obrigada a fugir; deixei de lado cada uma
das certezas que me foram ensinadas. Nasci em Mogadíscio, Somália, em 1969.
Quando ainda era muito pequena, meu pai foi preso em decorrência do seu
envolvimento na oposição política à brutal ditadura. Ele escapou da prisão e
fugiu rumo ao exílio. Aos oito anos, eu e os meus irmãos fomos levados por
minha mãe para a Arábia Saudita, para viver com ele. Um ano mais tarde, fomos
expulsos do país e mudámo-nos para a Etiópia, onde ficava a base de operações
do grupo oposicionista do meu pai. Após cerca de dezoito meses vivendo por lá,
nós nos mudámos novamente, para o Quénia. Cada mudança de país me encontrava despreparada
num idioma totalmente novo e costumes muito distintos. A cada vez, eu tentava adaptar-me
da maneira desesperada e muitas vezes vaidosa de uma criança. A única constante
na minha vida era o resoluto elo da minha mãe com o Islão. O meu pai deixou o
Quénia, e a nossa família, quando eu tinha onze anos. Só pude revê-lo quando já
tinha 21 anos. Durante a sua ausência, tornei-me uma muçulmana zelosa e fiel,
por influência de um professor da escola. Também retornei, por oito meses, à
Somália, onde vivenciei o nascimento da guerra civil e o caos e a brutalidade
do grande êxodo de 1991, quando metade da população do país foi expulsa de casa
e 350 mil pessoas morreram. Quando eu tinha 22 anos, meu pai ordenou que me
casasse com um parente, um desconhecido que vivia em Toronto. Na viagem do Quénia
até ao Canadá, eu deveria fazer uma escala na Alemanha, onde obteria o meu
visto canadense e então seguiria viagem. Mas uma espécie de desespero
instintivo fez-me mudar de ideia. Tomei um comboio rumo à Holanda. Essa viagem
foi ainda mais angustiante do que as viagens anteriores que eu fizera, e o meu
coração pulava ao pensar nas implicações do que eu estava a fazer e no que o meu
pai e o meu clã fariam quando descobrissem que eu tinha fugido. Na Holanda,
descobri a generosidade dos desconhecidos. Eu não era nada para aquelas pessoas,
e mesmo assim elas me alimentaram e abrigaram, me ensinaram o seu idioma e permitiram
que eu aprendesse o que quisesse. A Holanda funcionava de uma maneira diferente
de todos os países nos quais morei. Era uma terra pacífica, estável, próspera,
tolerante, generosa, de uma bondade profunda. Enquanto aprendia holandês,
comecei a formular uma meta quase impossível, tamanha a ambição dela: estudar
ciências políticas para descobrir por que esta sociedade, apesar de
infiel aos meus olhos, funcionava, ao passo que todas as outras sociedades
que eu conhecera, independentemente do quanto se afirmassem muçulmanas, apodreciam
com corrupção, violência e uma malícia egocêntrica. Por muito tempo oscilei
entre os ideais claros do iluminismo que aprendi na universidade e a minha
submissão aos ditames igualmente claros de Alá, aos quais eu temia desobedecer.
Enquanto cursava a faculdade, trabalhei como tradutora de somali para o
holandês a serviço do departamento de assistência social da Holanda, e conheci
muitos muçulmanos em circunstâncias difíceis, em lares para mulheres
espancadas, prisões, aulas especiais. Nunca liguei os pontos, na verdade,
tentei evitar isso ao máximo, de modo que não pude perceber a relação entre a
fé no islão e a pobreza, entre a religião e a opressão das mulheres, bem como a
impossibilidade de escolhas livres e individuais. Ironicamente, foi Osama bin
Laden quem me libertou desse desejo. Após o 11 de Setembro, pareceu-me
impossível ignorar as alegações dele segundo as quais a destruição de vidas
inocentes (ainda que infiéis) era condizente com o Alcorão. Procurei no texto,
e descobri que era verdade. Isso significava que eu não poderia mais ser uma
muçulmana. Na verdade, percebi que já não era muçulmana havia muito tempo. Ao manifestar-me
a respeito de tais questões, comecei a receber ameaças de morte. Também pediram
que me candidatasse ao parlamento holandês como membro do Partido Liberal, defensor
do livre mercado. Ao eleger-me parlamentar, sendo jovem, negra e mulher, e com frequência
acompanhada por um guarda-costas, tornei-me muito visível. Mas estava protegida;
meus amigos e colegas, não. Após ter concluído com o director Theo van Gogh um filme
que demonstrava como o islão anula as mulheres, Theo foi assassinado por um muçulmano
fanático, um jovem de 26 anos que nascera em Marrocos e fora trazido para
Amsterdão pelos seus pais». In Ayaan Hirsi Ali, Nomad, From Islam to
America, Nómade, tradução de Augusto Calil, Companhia das Letras, 2010, ISBN
978-858-086-374-1.
Cortesia
da CdasLetras/JDACT