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«(…) O pai já tivera uma longa conversa com ele. Era já altura de ter juízo.
Preferia outra nora, é certo, mas não punha objecções quanto à viúva. Tinha
dinheiro, era bonita e muito apresentável, talvez um tanto doidivanas, para o
seu gosto. O resto da família levantava dificuldades, principalmente, a prima
Catarina, toda venenosa. A mãe queria uma noiva virgem, que ainda não passara
por trato de ninguém, no que era secundada pela avó e as tias. Adozindo não
tugia nem mugia, alheando-se às discussões intermináveis, como se tudo aquilo
não lhe dissesse respeito. Só ele sabia quanto a viúva podia ser de absorvente
e cansativa.
Não se esquecera, porém, da aguadeira, embora afirmasse para consigo
mesmo que a riscara como uma má recordação. O espinho da derrota ainda estava
presente, a verrumar-lhe o amor-próprio. Se até uma inglesa, filha eleita e
dilecta do Império Britânico lhe caíra nos braços, como era possível que uma
aguadeira de pé descalço e analfabeta tivesse o desplante de repeli-lo? Para a
sua vaidade, tal facto era uma coisa insuportável.
Sempre que via uma jovem transportando baldes e cestos, com o varapau
ao ombro, o coração acelerava-se e a imagem, já diluída da rapariga,
dançava-lhe diante dos olhos, a fulgurante trança, oscilando dum lado para o
outro. Adorava essa trança, sentia as entranhas incendiarem-se quando imaginava
acariciá-la, como não acontecia com qualquer outra cabeleira de mulher. Só por
causa disso, voltaria de bom grado ao Cheok Chai Un. Mas temia o varapau.
Uma noite em que adormecera, com a mão sobre o peito, sonhara que
desfazia voluptuosamente a trança, mas a moça irritada virara-se contra ele,
com o varapau em riste, assumindo a grossura duma tranca portentosa. Acordou,
com a sensação de ter sido sovado. Doíam-lhe os ossos do peito, dos braços e
das pernas, o corpo coberto de suor. Interpretou o sonho como uma prevenção e
supersticioso resistiu a qualquer tentação de ir ao bairro. A trança, no
entanto, ficou como uma obsessão.
Naquele começo da tarde de fins de Maio, acordara bem disposto da sesta
que fazia, antes de ir para a agência do pai. Saltou da cama e dirigiu-se para
a casa de banho, no tardoz da casa. Da janelinha que se projectava para o
quintal, subia o tagarelar das criadas que aproveitavam a sua hora de descanso,
depois do almoço. Era um palreio que entrava no quotidiano, à mistura com a
cega-rega das cigarras e demasiado usual para cativar a sua curiosidade.
Nisto, entre as vozes, ecoou um risinho diferente mas que já o surpreendera
outrora. Debruçou-se, repassado de curiosidade, sobre o peitoril da janelinha.
Recuou, instintivamente, o coração aos pulos. Ter-se-ia enganado? Com toda a
cautela, como um ladrão que não quer ser visto, espreitou, de novo. Não fora ilusão
nenhuma. A aguadeira dos seus sonhos, estava em baixo, de cócoras, falando animadamente
e bebericando uma tigela de chá. Usava o (tun-sam-fu, preto de trabalho e, como
sempre, andava com os pés nus, os dedos sujos de lama e poeira dos caminhos. Como
estava entre criadas, desabotoara o botão da gargantilha mole, para estar mais
à vontade. As calças, com a flexão dos joelhos, tinham subido, mostrando o
tornozelo e um pedaço modelado das pernas. A trança lasciva enroscara-se para a
frente do peito, para não sujá-la possivelmente com o contacto com o chão. Os
cabelos, na curva da cabeça, tinham chispas azuladas, como asa de corvo ao sol.
A moça entrara mesmo na toca do lobo, sem pressentir. Substituíra uma
colega doente e quebrada de idade. Lembrava-se agora da mãe ter-se referido à
nova aguadeira que trazia uma água da fonte, muito boa e cristalina. Era a água
do poço de Cheok Chai Un! Isto há coisa de um mês. E todo esse tempo, sem ele
nada saber! Evitou todo e qualquer ruído. Bastaria ela voltar os olhos para cima
e dava com ele. O choque seria grande demais, podia fugir e recusar-se, dali
para diante, a levar água para aquela casa. E isto era o que ele não desejava,
quando lhe descobrira outro dom. Tinha uma voz quente, bem timbrada, que
provocava inefáveis arrepios. Em baixo, A-Leng espreguiçou-se. Como estava ali
bem, naquela paz e como era difícil voltar ao poço, para outro carrego algures.
Com a mão, brincava com a trança, levando-a ao nariz para cheirar, passando e
repassando os dedos por ela, ajeitando os nós. Era uma flor entre as urtigas!» In
Henrique Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN
972-9440-80-8.
Cortesia daFOriente/JDACT