sábado, 12 de março de 2016

Camões. Poema. Camoneana 423. Almeida Garrett. «Certo amigo na angústia, que aos tormentos myrradores, que a vida me entravavão, aligeiraste o peso, e com amiga dextra cravaste á roda do infortúnio cravo, que ao giro bárbaro lhe impece de alfim dar cabo aos procellosos dias…»

Cortesia da BNP e jdact

CAMÕES
Canto Primeiro

[…]
«Vem; não receies a acintosa mofa
desta volúvel, desprezível gente,
povo de variáveis sycophautas:
não te conhecem elles. Eia! Vamos:
deixa o caminho da infeliz Pyrene;
taes mágoas, com ahi vão, poupa a meus olhos;
Assás tenho das minhas. Largo! aos mares:
livres corramos sobre as ondas livres
do oceano indomado por tyrannos,
livre como sahiu das mãos do Eterno,
sua feitura única no globo,
que impias mãos d'homens não poderão inda
avassallar, destruir. Ahi d'entre as vagas
surge a princeza altiva das armadas,
pátria da lei, senhora da justiça,
couto da foragida liberdade.
Salve, Britania, salve, flor dos mares,
eu te saúdo, ó terra hospitaleira!
Se ora, pousando em tuas ricas praias,
podesse ir abraçar fieis amigos,
que pelas ribas desse nobre Thamesis
vivem á sombra d'arvore sagrada
de abençoada independência a vida!
Não posso; mas sobeja-me a lembrança
indelével, e a voz não morredoura
da sincera, gratissima amizade.

Certo amigo na angústia, que aos tormentos
myrradores, que a vida me entravavão,
aligeiraste o peso, e com amiga
dextra cravaste á roda do infortúnio
cravo, que ao giro bárbaro lhe impece
de alfim dar cabo aos procellosos dias
do malfadado, perseguido vale;
a ti minhas endeixas mal cantadas
nas solidões do exílio, onde as repettem
os ermos echos de estrangeiras grutas,
a ti meus versos consagrei na lyra:
quebrada sobre o escolho da desgraça
inda languidos sons desfere a medo,
que a teu fiel ouvido vão memorias
Lembrar da patria, e recordar do amigo.

Ouves? Rija celeuma aos ares sobe,
e fere os ventos, que nas ondas folgão.
Terra, terra! Bradou gageiro álerta.
Terra! echoa confusa vozeria
da maritima turba: Oh! Voz querida,
doce aurora de gôso, e de esperança
ao coração do nauta enfraquecido,
do alquebrado sequioso passageiro,
que a esposa, os filhos, ou talvez a amante
nessa voz doce, e grata lhe alvejarão.

Terra, e terra da pátria! Debuxada
se ve pullando a magica alegria
Nnos semblantes de todos. Ja contentes,
um se affigura surprehender o amigo,
outro á esposa fiel cahir nos braços;
este da velha mãe, que ha tanto o chora,
ir enchugar as lagrimas afflictas;
aquelle entre alvoroços, e receios,
não ousa de pensar se ao pae enfermo
na descarnada mão rugosa, e sècca
osculo filial lhe é dado ainda.

Respeitoso imprimir, ou se a ternura,
se o amor de filho sobre lage avara
se irá quebrar de gélido sepulcro,
que em sua ausência, tamlonga, lho roubasse.
Qual da amada, que sempre foi constante,
ou sempre, ao menos, lha pintou de longe
a namorada ideia, perto agora
começa de temer que tal distancia,
separação tammanha, e tam comprida,
novo amante mais perto... Mas quem sabe?
Talvez... E esse talvez é de esperança
querida sempre, sempre lisonjeira».
[…]


In Almeida Garrett, Camões, Poema, Camoneana 423, Paris, R. 32594, Livraria Nacional e Estrangeira, Rue Mignon, 2, faub. St. Germain, Biblioteca Nacional de Portugal (Biblioteca Nacional de Lisboa) 1825.

Cortesia da BNP/JDACT