sexta-feira, 4 de março de 2016

Bala Santa. Luís Miguel Rocha. «Para a maioria, o papa não passa de uma imagem na televisão, de uma fotografia, de uma ilusão. Para o jovem de 23 anos que aguardava no meio da multidão, sempre com as duas mãos enfiadas nos bolsos do casaco»

jdact e wikipedia 

Anno Domini MMVII
«(…) O calculismo do mais velho assoma-lhe à boca. Não é dado a imponderabilidades ou surpresas de última horta. Com certeza. Recolhi tudo antes de as autoridades chegarem. A idade dele também ajudou a que encerrassem tudo mais rapidamente, explica o mais novo com um tom frio e profissional. Perfeito. Continuam a comer em silêncio durante algum tempo. Deste modo se percebe quem marca a cadência da conversa, para não a rotular de interrogatório, pelo menos nesta fase, pois este não é um almoço de confraternização ou convívio, mas uma reunião com um plano de trabalhos bem delineado pelo mais velho. Ambos comem, pausadamente, enchendo o garfo com pouca comida de cada vez e parando para mastigarem sem pressa. A segunda parte do plano vai iniciar-se de imediato, começa o mais velho. Vai ser cada vez mais exigente. Não pode haver falhas. Não haverá, garante o mais novo, confiante. Como está a equipa? Já no terreno há algumas semanas, conforme ordenado. Todos os alvos estão sob vigia permanente, excepto um. Pois, pois. Óptimo. Só faltava esfregar as mãos de contente, se fosse um homem dado a elocuções gestuais. Todas as emoções são guardadas para si e jamais partilhadas. Porém, aquele que falta não será fácil de agarrar. E em Londres? O nosso homem conseguiu acesso privilegiado ao alvo, explica. Assim que eu dê o ok, o caminho será aberto. São as partes mais difíceis de concretizar do plano. Londres e JC, informa com dureza o homem de costas para a sala de refeições. Ainda não há sinal dele?, quer saber o mais jovem. Não. É uma raposa velha, como eu. Mas somos obrigados a fazê-lo aparecer, caso contrário, o plano ficará comprometido. Fá-lo-emos aparecer. Londres provocará isso. Sim. Assim que surja, não pense, aja. Se se der ao luxo de pensar durante um segundo que seja, quando der por si, já estará dominado por ele. O jovem não consegue imaginar um cenário desses. Não que não esteja preparado para tudo, mas a ideia de haver pessoas com tanta rapidez de raciocínio como ele parece-lhe um tanto ou quanto improvável. Além, disso estamos a falar de um velho com mais de setenta anos. Que mal poderá ele representar? Não deixa, porém, transparecer tais pensamentos perante o idoso sentado na sua mesa, ou antes, na mesa dele. Sei o que pensa, adverte o mais velho. Todos os seres humanos têm fraquezas. A minha é a Igreja, a sua é a autoconfiança. É um erro. Retire tudo isso da equação, o seu próprio ego. Só assim poderá garantir que não falhará.
Será feito. Terá mesmo de ser. Caso contrário, não será você a olhar para o cadáver deles. E mesmo em Londres não vai ser fácil. Tenho lá um homem muito eficiente que abrirá o caminho para eu fazer o trabalho. Uma ressalva antes de tudo o resto. De momento, não tenho qualquer motivo para criticar ou censurar o seu trabalho. Cem por cento de eficácia, mas sem nunca ter defrontado as forças que vai ter pela frente desta vez... O plano é praticamente infalível, contesta o jovem, ousadamente. Isso não existe, argumenta o outro. Existe um plano que tem tudo para dar certo, aliás, tem de dar certo, é essa a minha vontade, mas infalível nem o papa. Claro, mas... Para terminar a minha ressalva, interrompe, apenas uma pequena advertência. Espera que o jovem o fite bem nos olhos, captando toda a sua atenção: JC foi o homem que matou João Paulo I, em 1978 e, apesar disso, não conseguiu matá-lo em Londres. E, também ele, nunca tinha falhado antes. O jovem absorve as palavras e queda-se pensativo durante alguns momentos. O velho tem razão. O excesso de confiança é inimigo da concretização. É essa a mensagem que ele quer fazer passar. Compreendi. Não darei margem de manobra a ninguém. Também ele está ciente de que se falhar não sobreviverá. Seja por intermédio de JC ou deste cliente frequente do restaurante localizado em cidade incógnita, não verá o dia seguinte. É hora de mudar de assunto, dentro do mesmo tema, seguindo a enorme abrangência do plano. E quanto a Mitrokine?
Está tratado, responde o velho. Os meus contactos em Moscovo estão a tratar do assunto neste preciso momento. E o turco? Deixe-o continuar preso. Esse não faz mal a ninguém. Não se esqueça que não voltaremos a comunicar até que o plano se conclua. Sim, compreendo. Não esquecerei. Só falta... O Vaticano, interrompe o velho. Desses tratarei pessoalmente. Pela primeira vez o velho esboça um sorriso esbatido. Tudo tem um início.

Wojtyla. 13 de Maio de 1981
De entre aquelas vinte mil pessoas, nenhuma saberá dizer ao certo se chovia ou se o céu estava limpo naquele longínquo décimo terceiro dia, do quinto mês, do ano da Graça do Senhor de 1981. Porventura, se fizessem um esforço, pudessem afirmar com alguma dose de certeza que estava um dia de sol brilhante, um calor primaveril aprazível, apesar de ter chovido um pouco a meio da tarde, não muito, apenas durante cinco minutos. E, destas vinte mil pessoas, mais de metade não se lembrará do calor primaveril aprazível, tão-pouco do sol, mas não esquecerá a chuva, conseguirão ainda senti-la a molhar o corpo, a ensopar os ossos, tal como no próprio dia em questão. Alguns duvidarão inclusive de que tenha chovido somente durante cinco minutos, não, foi muito mais, cinco minutos apenas não molham assim tanto. Mas de todas as reminiscências, estas vinte mil pessoas não se lamentarão nem da chuva nem do sol, contudo ainda sentem a dor e as lágrimas a escorrerem pelas suas faces, e o som agudo de cada tiro bem vivos na mente, um, dois, três, quatro, cinco, seis, primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto, sexto. E o impacto que rasgou a carne e fez chiar de mágoa as vinte mil pessoas, tanto como a própria vítima. Disso sim, lembram-se. Que importância tem o sol e a chuva no meio de um calvário desses? Que importam as horas certas, se o papa podia ter morrido? Vinte mil pessoas aguardavam-no nesse dia, na majestosa Praça de São Pedro, a sala de visitas do mundo católico. Para aqueles eleitos pelo acaso adequava-se a máxima de ir a Roma e ver o papa. No número magno de um bilião de fiéis católicos que, segundo o mundo estatístico, se espalham pelo globo, apenas alguns poucos milhões poderão dizer que já viram o papa e desses, menos ainda poderão gritar a viva voz que o viram a uma distância identificável. E, no fim de contas, apenas um parco número na ordem dos milhares poderá afiançar que tocou no Santo Padre ou que trocou palavras com ele. Para a maioria, o papa não passa de uma imagem na televisão, de uma fotografia, de uma ilusão. Para o jovem de 23 anos que aguardava no meio da multidão, sempre com as duas mãos enfiadas nos bolsos do casaco, o Sumo Pontífice, Karol Wojtyla, era apenas um trabalho». In Luís Miguel Rocha, Bala Santa, Cavalo de Ferro Editores, Paralelo 40, Lisboa, 2007, ISBN 978-989-813-400-4.

Cortesia de CFerro/JDACT