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O
mistério da Foz
«As
portadas da janela chiaram nos gonzos e fecharam-se com grande estrondo,
espantando os pombos. O estalajadeiro estremeceu com a brutalidade da pancada, parou
de regar o canteiro das begónias e, olhando para cima, gritou, irritado: devagar,
Maria! Não é pra partir, mulher! A criada não lhe respondeu. Aquela Maria tinha
um feitio difícil, um geniozinho, como dizia a cozinheira, e nos últimos dias uma
zanga com a irmã que vivia na Ribeira pusera-a trombuda, de maus modos e poucas
falas. Era nesse estado de espírito que andava agora pelo primeiro piso da estalagem
a fechar as portadas, uma das suas obrigações diárias. E, pelo que se via,
embirrara com aquelas grandes janelas viradas a poente que tinham estado languidamente
escancaradas a beber o ar do mar e a luz majestosa do entardecer enquanto ela se
revolvia num caldo negro de ressentimentos e maus fígados. Com jeito, mulher, com
jeito..., ralhou o estalajadeiro. E depois, remoendo várias pragas para si próprio,
acrescentou em voz baixa: estúpida! Não lhe custou a ganhar...
Ia para
quinze anos que Sátiro José Costa era dono daquela estalagem e nunca se encolhera
diante das criadas. Dizia-lhes o que tinha a dizer e quando não estava satisfeito
punha-as na rua. Com Maria, porém, era diferente: refreava-se e aturava-lhe as
venetas pelos momentos de luxúria que ela lhe consentia. A troco do acesso à
sua alcova e aos seus encantos, aquela Maria tomara liberdades, medira-lhe as fraquezas
e fazia dele o que muito bem queria. Desafiava-o, desobedecia-lhe, exigia-lhe arrecadas
e fios de ouro, que ele, obediente e manso, dava, enganava-o com o moço de estrebaria
e com o azeiteiro de Vilar, e tudo isso ele suportava com estoicismo mudo, na mira
do calor do seu seio e da visão esplêndida daquele corpo flexível e jovem, nu sobre
a cama. As carnezinhas lascivas de Maria tinham-no convertido num mártir da paixão.
Mas se, como mártir, aceitava com resignação ser desautorizado e, até, enganado,
como patrão não suportava que ela lhe maltratasse o material. Aquelas janelas não
iam lá com gestos bruscos. Exigiam cuidado e uma certa reverência, pois nelas se
haviam debruçado alguns dos nomes mais ilustres e respeitáveis da história recente
do reino. Ali tinham estado o muito chorado marquês de Loulé, o Manuel Fernandes
Tomás, que Deus tinha, e, até, o marquês de Palmela, que pernoitara no quarto
maior, poucos dias antes da fuga no Belfast (navio que na madrugada de 3 de Julho
de 1828, após o fracasso da insurreição contra o rei Miguel, conduziu os chefes
liberais para Inglaterra, deixando o exército entregue à sua sorte). Isso, claro
está, nos bons velhos tempos, quando a estalagem formigava de clientes famosos e
quando a palavra Costa ainda era sinónimo da melhor casa de hóspedes de São
João da Foz e, talvez mesmo, de todo o Baixo Douro. Agora, infelizmente, os tempos
eram outros, tão decaídos que davam pena. Desde que o rei Miguel subira ao trono,
os clientes de boa posição rareavam, talvez por não quererem ser vistos na casa
de um homem tido por liberal. Já lá iam quatro anos de penúria e o
correspondente decréscimo dos ganhos tornava impossível obstar à degradação do
edifício. Havia rombos no telhado, muitas madeiras lascadas e apodrecidas, e a frontaria
estava coberta de salitre e de musgo. As paredes exteriores enchiam-se de
fendas, a sua cor amarela ia morrendo a cada novo dia e as letras pintadas por cima
da porta principal já quase não se liam, esvaídas numa tinta gasta e na sujidade
parda daquele ar de princípios de Junho. Nas últimas semanas não caíra uma única
gota de chuva no Porto e qualquer aragem mais forte levantava nuvens de poeira acastanhada
que engoliam e enevoavam tudo.
O estalajadeiro
suspirou, desalentado. Assim que tivesse ânimo e vagar, teria de pintar de novo
o nome Costa, e desta vez em vermelho-vivo e letras de côvado. Talvez
assim fosse visível da estrada, por entre o pó, e ajudasse a devolver à estalagem
o seu antigo esplendor. Lançando um olhar dorido e nostálgico à vereda deserta que
subia da estrada até ao seu estabelecimento, Sátiro Costa passou pela arrecadação
para guardar o regador e o ancinho que estivera a usar, e, após ter tirado o avental
esverdeado e sacudido o pó dos sapatos, entrou cabisbaixo no vestíbulo da
estalagem. Era um homem de baixa estatura, ombros largos e andar desequilibrado
pois os pés, muito pequenos, sustinham mal o peso do seu corpo anafado. Os seus
olhos e gestos, dantes ágeis e expressivos, tinham perdido vivacidade e os seus
abundantes caracóis castanhos iam embranquecendo com as agruras dos tempos. Ainda
assim, a barriguinha redonda e os lábios grossos que, sob a barba rala, mexiam incessantemente
como se beijassem o ar, vinham pôr um tom risonho de bacorinho rosado naquela figura
pacata e, mesmo que o não fosse, Sátiro parecia um homem feliz. Foi, por isso, com
um paradoxal ar de felicidade que, ao cruzar-se com a mulher, que levava, nos
braços, um molho de roupa para engomar, o estalajadeiro lamentou a continuação da
má sorte: mais um dia sossegado, Adélia. Ânimo, homem, atirou-lhe ela. Ânimo! Não
há mal que sempre dure. Com a ajuda de Deus havemos de nos arranjar». In
João Pedro Marques, O Estranho Caso de Sebastião Moncada, Porto Editora, 2014,
ISBN 978-972-004-495-2.
Cortesia
de PEditora/JDACT