O enigma do Santo Sudário. 1502. Florença
«(…) A existência de Leonardo Da
Vinci, no aspecto pessoal, baseara-se em evitar a todo O custo qualquer confronto.
De facto, buscava sempre reconciliar-se com todos os que, muitas vezes por
rivalidades incitadas por terceiros, iniciaram alguma disputa ou discórdia.
Inclusive estava disposto, quando necessário, a rebaixar-se, a assumir parte de
uma culpa que muitas vezes nem tinha, pois era de natureza cordial e amável, em
nada vaidoso ou orgulhoso. E ainda que essa atitude lhe houvesse proporcionado
alguns episódios infelizes, sobretudo com Michelangelo Buonarotti, a quem, em segredo,
admirava, preferia continuar mantendo essa postura. Está bem, aceitou Leonardo,
inclinando a cabeça. Tentarei fazer o que me pedis, senhores. Mas não posso
prometer nada. E, quanto ao tempo, necessitarei de pelo menos um ano; pode ser
que mais... Tereis quatro semanas ao todo, disse César já aparentemente calmo. Não
dispomos de mais tempo. Sabemos que o fareis com a vossa costumeira mestria,
interveio o papa. E, tentando lembrar-se, perguntou: como era mesmo a vossa
divisa, Leonardo? Obstinato rigore, santidade, respondeu este com um fio
de voz. Obstinado rigor de alcançar a perfeição. É isso: obstinado rigor.
Paris. 1888
A noite estava fria e desagradável.
A Cidade Luz, Paris, tomava-se, nessas horas, um manto de sombras, no qual a
iluminação da rua quase não podia penetrar. A iluminação a gás ainda não havia chegado
àquela parte da cidade. No ar, um fétido cheiro de mofo que exalava do Sena misturava-se
com o repugnante aroma de peixe podre das mercearias e das imundícies que eram
jogadas no rio. E para completar o fedor de cerveja rançosa que vinha das pouco
recomendáveis tabernas. Aquele era o lugar onde assassinos, bêbados e
prostitutas se divertiam até amanhecer e onde terríveis figuras tramavam
intrigas e mortes. Jean Garou ia para casa, como todas as noites, porém um
pouco mais tarde que de costume. Administrava uma peixaria que havia pertencido
à sua família durante gerações, próxima ao cais: uma casinha de madeiras podres
que já tivera melhores dias. Dirigiu-se ao cais, olhando para todos os lados com
medo e tentando examinar as sombras. Já fora atacado várias vezes; numa delas,
inclusive, ficou ferido gravemente. Ao lembrar-se desse facto, passou a mão
pelo rosto quase se esquecendo da cicatriz que lhe atravessava as bochechas. São
maus os tempos para os homens de bem, sussurrou. Ouviu ao longe o uivo de um
melancólico cão, como se este quisesse confirmar as suas palavras. Jean olhou
para o céu. As nuvens cobriam grande parte dele, ainda que às vezes a lua cheia
conseguisse mostrar-se. A sua luz iluminava a catedral de Notre Dame, que
ficava a leste, na ÎIe de la Cite, dando-lhe uma silhueta
fantasmagórica. Havia muitas lendas a respeito dessa catedral, antigos mitos
sobre sociedades secretas e poderosos cavaleiros. Garou perguntava-se sempre o
que haveria de real naqueles contos de bruxas. Algo aconteceu quando a lua
apareceu novamente entre as nuvens. Por um breve instante, Jean pensou ter
visto algo brilhando no rio. Foi até a beira do cais, entre curioso e com medo.
Tentou enxergar entre as águas escuras, mas não pôde ver nada. Ajoelhou-se e
observou com mais atenção. Intrigado, inclinou-se até que o seu nariz quase
tocasse a água do rio. Onde...? Ouviu passos atrás de si, seguidos de
gargalhadas grotescas e ameaçadoras. O barulho surpreendeu-o, fazendo-o perder
o equilíbrio e cair no rio. De repente viu-se envolvido pela mais completa
escuridão. A água gelada enrijeceu o seu corpo, enquanto movia rapidamente os
braços e as pernas tentando em vão chegar de novo à superfície. Havia algo a
segurar a sua perna, que o impedia de sair. Estava aterrorizado: tanto, que se
esqueceu de onde estava; e gritou, gritou com todas as suas forças. Mas só conseguiu
ouvir um som abafado e estranho. A fétida água entrou em seus pulmões pelo
nariz e pela boca. Estava afogando-se e, mesmo assim, sentindo náuseas. Estava
perdendo os sentidos; sentia como se a sua consciência se dissolvesse na mesma
água que o estava matando. Olhou pela última vez para o céu. A lua apareceu
entre as nuvens, rodeada por uma auréola esverdeada, distorcida... foi nesse momento
que o viu. Encontrava-se diante dele. Com as poucas forças que lhe sobravam,
estendeu o braço lentamente. Sentiu a sua superfície fria nas pontas dos dedos
e um calafrio percorreu o seu corpo quando, finalmente, o segurou. Nesse
momento sentiu-se livre. O que quer que estivesse a segurar a sua perna
simplesmente o havia soltado. Quando conseguiu chegar à superfície, inspirou o
ar com tanta força que sentiu dor no peito. Com dificuldade, conseguiu chegar
ao cais, onde permaneceu imóvel durante algum tempo, vomitando água e tentando
recuperar o fôlego». In David Zurdo Ángel Gutierrez, O Último
Segredo de Da Vinci, O enigma do Santo Sudário, Editora Novo Século, 2005, ISBN
858-891-696-7.
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