quarta-feira, 30 de março de 2016

A Hora do Diabo. Fernando Pessoa. «Certos imitadores meus, na terra e acima da terra, são perigosos, como todos os plagiários, porque não conhecem o segredo da minha maneira de ser. Shakespeare, que inspirei muitas vezes, fez-me justiça: disse que eu era um cavalheiro»

jdact e wikipedia

A Hora do Diabo
«(…) Mas, se o mundo é acção, como é que o sonho faz parte do mundo? É que o sonho, minha senhora, é uma acção que se tornou ideia; e que por isso conserva a força do mundo e lhe repudia a matéria, que é o estar no espaço. Não é verdade que somos livres no sonho? Sim, mas é triste o acordar... O bom sonhador não acorda. Eu nunca acordei. Deus mesmo duvida que não durma. Já uma vez ele mo disse... Ela olhou-o de sobressalto e teve subitamente medo, uma expressão do fundo de toda a alma que nunca sentira. Mas afinal quem é o senhor? Porque está assim mascarado? Respondo, numa só resposta, às suas duas perguntas: não estou mascarado. Como? Minha senhora, eu sou o Diabo. Sim, sou o Diabo. Mas não me tema nem se sobressalte. E num relance de terror extremo, onde boiava um prazer novo, ela reconheceu, de repente, que era verdade.
Eu sou de facto o Diabo. Não se assuste, porém, porque eu sou realmente o Diabo, e por isso não faço mal. Certos imitadores meus, na terra e acima da terra, são perigosos, como todos os plagiários, porque não conhecem o segredo da minha maneira de ser. Shakespeare, que inspirei muitas vezes, fez-me justiça: disse que eu era um cavalheiro. Por isso esteja descansada. Na minha companhia está bem. Sou incapaz de uma palavra, de um gesto, que ofenda uma senhora. Quando assim não fosse da minha própria natureza, obrigava-me o Shakespeare a sê-lo. Mas, realmente, não era preciso. Dato do princípio do mundo, e desde então tenho sido sempre um ironista. Ora, como deve saber, todos os ironistas são inofensivos, excepto se querem usar da ironia para insinuar qualquer verdade. Ora eu nunca pretendi dizer a verdade a ninguém em parte porque de nada serve, e em parte porque a não conheço. O meu irmão mais velho, Deus todo poderoso, creio que também a não sabe. Isso, porém, são questões de família.
Talvez não saiba porque é que a trouxe aqui, nesta viagem sem termo real nem propósito útil. Não foi, como parecia que ia julgar, para a violar ou atrair. Essas coisas sucedem na terra, entre os animais, que incluem os homens, e parece que dão prazer, creio, segundo me dizem de lá de baixo, até às vítimas. De resto, não poderia. Essas coisas acontecem na terra, porque os homens são animais. Na minha posição social no universo são impossíveis não bem porque a moral seja melhor, mas porque nós, os anjos, não temos sexo, e essa é, neste caso pelo menos, a principal garantia. Pode, pois, estar tranquila porque a não desrespeitarei. Bem sei que há desrespeitos acessórios e inúteis, como os dos romancistas modernos e os da velhice; mas até esses me são negados, porque a minha falta de sexo data desde o princípio das coisas e nunca tive que pensar nisso. Dizem que muitas feiticeiras tiveram pactos comigo, mas é falso; ainda que o não seja, porque o com que tiveram pacto foi com a própria imaginação, que, em certo modo, sou eu.
Esteja, pois, tranquila. Corrompo, é certo, porque faço imaginar. Mas Deus é pior num sentido, pelo menos, porque criou o corpo corruptível, que é muito menos estético. Os sonhos, ao menos, não apodrecem. Passam. Antes assim, não é verdade? É o que está significado no Arcano 18. Confesso que não conheço bem o Tarot, porque ainda não consegui aprender os seus segredos com as muitas pessoas que há no mundo que o compreendem perfeitamente. Dezoito? O meu marido tem o grau 18 da Maçonaria. Da Maçonaria, não: de um rito da Maçonaria. Mas, apesar do que se tem dito, não tenho nada com a Maçonaria, e muito menos com esse grau. Referia-me ao Arcano 18 do Tarot, isto é, da chave de todo o universo, da qual, aliás, o meu entendimento é imperfeito, como o é da Cabala, da qual os doutores da Doutrina Secreta sabem mais do que eu. Mas deixemos isso, que é puramente jornalístico. Lembremo-nos de que sou o Diabo. Sejamos, pois, diabólicos. Quantas vezes tem sonhado comigo?
Que eu saiba, nunca, respondeu, sorrindo, Maria, fitando-o com olhos muito abertos. Nunca pensou no Príncipe Encantado, no Homem Perfeito, no amante interminável? Nunca sentiu ao pé de si, em sonho, o que acariciasse como ninguém acaricia, o que fosse seu como se a incluísse em ele, o que fosse, no mesmo tempo, o pai, o marido, o filho, numa tripla sensação que é só uma? Embora não compreenda bem, sim, creio que pensei assim e que senti assim. Custa um pouco a confessá-lo, sabe? Era eu, sempre eu, que sou a Serpente, foi o papel que me distribuíram desde o princípio do mundo. Tenho que andar a tentar, mas, bem entendido, num sentido figurado e frustrante, porque não vale tentar utilmente. Foram os gregos que, pela interposição da Balança, fizeram onze os dez signos primitivos do Zodíaco. Foi a Serpente que, pela interposição da crítica, tornou realmente doze a década primitiva. Realmente, não percebo nada. Não percebe: ouça. Outros perceberão. As minhas melhores criações o luar e a ironia». In Fernando Pessoa, A Hora do Diabo, História e Alcance, Assírio e Alvim, Lisboa, 1997, ISBN 978-972-370-435-8

Cortesia AAlvim/JDACT