quarta-feira, 2 de março de 2016

Judas. O Obscuro. Thomas Hardy. «Enquanto esvaziava os baldes atrás da casa, Judas podia ouvir uma conversa entre a sua tia-avó, a Drusila da tabuleta, e algumas outras moradoras da aldeia»

Cortesia de wikipedia

«(…) O menino voltou ao poço onde deixara os baldes, quando fora ajudar o seu professor e patrão. Havia agora certo tremor nos seus lábios e, depois de ter suspendido a coberta do poço para fazer descer o balde, parou e apoiou a fronte e os braços no local. O seu semblante tinha se endurecido como o de uma criança que cedo demais tivesse conhecido os espinhos da vida. O poço cujo fundo fixava era tão antigo quanto a aldeia. Assemelhava-se a uma longa perspectiva circular, terminada alguns cem pés adiante pelo disco brilhante da água fremente. Acima da água havia como que uma bainha de espuma e, ainda mais perto, samambaias.
No tom melodramático que era natural num menino esquisito como ele, pensou que vinte vezes o professor havia apanhado água naquele lugar, em manhãs como aquela, e que jamais tornaria a fazê-lo. Frequentemente eu via-o a olhar o fundo deste poço, quando estava cansado de puxar água, como eu estou agora, e depois descansar um pouco antes de levar os baldes para casa! Mas ele era inteligente demais para ficar por muito tempo aqui neste lugar, pequeno e adormecido! Uma lágrima rolou dos seus olhos até às profundidades do poço. A manhã estava um pouco enevoada, e a respiração do menino espalhava-se, como uma névoa um pouco mais espessa, num ar tranquilo e pesado. Os seus pensamentos foram interrompidos por um brusco chamado: traga essa água, seu vagabundo, seu preguiçoso! Viera de uma velha que havia surgido da porta de uma cabana coberta de musgo e não muito distante. Rapidamente, o menino esboçou um sinal de assentimento, puxou a água num esforço excessivo para alguém do seu tamanho, esvaziou o balde grande nos dois outros que trouxera, bastante menores, e, depois de ter parado um momento para respirar, atravessou com eles o pequeno espaço de terra coberto de erva viscosa onde ficava o poço, quase no centro da pequena aldeia, ou melhor, da aldeola.
A aldeola, tão velha quanto pequena, descansava na parte côncava de uma elevação vizinha das colinas do norte do Wessex. Por mais velho que fosse, o poço era, sem dúvida, o único testemunho dos antigos tempos que ainda permanecia absolutamente intacto. Muitas das primitivas cabanas de há muito haviam sido demolidas e diversas árvores tinham caído ao solo. Antes de mais nada, a igreja primitiva, acorcundada, derreada, havia sido demolida e reduzida a pedaços, para formar amontoados de calhaus nos becos, parte para ser utilizada nos muros, bancos, cercas e outras necessidades dos jardins da vizinhança. Para substituí-la, edificara-se uma nova construção, em estilo gótico alemão, de aspecto estranho para olhares ingleses, obra de um certo demolidor de lembranças históricas que, num dia, fizera a viagem de Londres, ida e volta. Na relva verde e unida que, desde os tempos os mais recuados, servia de pátio à igreja, nada assinalava mais o lugar onde, durante tanto tempo, se erguera o velho templo do culto cristão. Em lugar dos antigos túmulos gastos, só se encontravam cruzes de ferro fundido barato, garantidas por um máximo de cinco anos.
Não obstante a sua constituição fraca, Judas Fawley levou os dois baldes cheios de água até à choupana sem parar nem um momento para descansar. Na porta, via-se um pequeno rectângulo de cartão azul, no qual se lia, pintado em letras amarelas: Drusila Fawley, padeira. Por detrás dos pequenos quadrados de vidro cercados de chumbo, pois era uma das raras casas antigas da aldeia, apareciam cinco bocais de bombons e três bolinhos num prato de flores. Enquanto esvaziava os baldes atrás da casa, Judas podia ouvir uma conversa entre a sua tia-avó, a Drusila da tabuleta, e algumas outras moradoras da aldeia. Tendo assistido à partida do professor, comentavam as peripécias do acontecimento e abundavam em previsões sobre o futuro do viajante. E quem é este?, indagou uma delas, (mais ou menos uma estrangeira em relação à aldeia) quando Judas entrou. Não é sem razão que a senhora o pergunta! É o meu sobrinho-neto, chegado aqui depois que a senhora esteve, da última vez. A dona da casa era uma mulher alta e magra que falava de modo trágico das coisas as mais banais e se dirigia sucessivamente a cada um dos seus auditores. Veio de Mellstock, do sul do Wessex, há cerca de um ano, infelizmente para ele, Belinda (disse virando-se para a direita), o seu pai lá vivia. E lá viveu até que foi acometido de tremores mortais e sucumbiu ao fim de dois dias, como você bem sabe, Carolina (virando-se para a esquerda). Teria sido uma bênção para esse pobre ser inútil, se Deus Todo-Poderoso o houvesse levado junto com o pai e a mãe dele. Mas eu o trouxe para viver comigo, até resolver bem o que se pode fazer dele. Naturalmente, vejo-me obrigada a fazer com que ganhe todo o dinheiro que possa ganhar. Ainda agora, anda espantando pássaros por conta do fazendeiro Troutham. Pelo menos, durante esse tempo, não faz tolices. Porque está nos dando as costas, Judas? continuou ela, pois o menino, sentindo todos aqueles olhares lançados sobre ele como bofetadas, voltara a cabeça para trás. A lavadeira replicou que talvez fosse uma esplêndida ideia da senhorita ou da senhora Fawley (chamavam-na indiferentemente assim) guardar o menino com ela para lhe fazer companhia na sua solidão, buscar água no poço, fechar as janelas à noite, ajudar a fazer o pão». In Thomas Hardy, Jude, The Obscure, Judas, o Obscuro, 1895, tradução de Octávio Faria, Geração Editorial, Colecção Redescoberta, ePub, 1994/1995, CDD 823.

Cortesia de GeraçãoE/ePub/JDACT