domingo, 13 de março de 2016

O Rebate. José Rentes de Carvalho. «Que cansada estou, meu Deus! Que cansada! As mezinhas e as rezas não ajudavam, engravidava, és como as coelhas, às ninhadas, com este seis, um fora, um dentro...»

jdact e wikipedia

«Numa aldeia de Trás-os-Montes a chegada de um dos seus filhos emigrados para França, que vem endinheirado e casado com uma francesa, provoca um verdadeiro cataclismo. Em França o Valadares, trabalhando na terra como um mouro, é premiado com a fortuna do patrão desde que case com a filha, moça doidivanas e descontrolada. Valadares e a mulher vêm a Portugal quando das tradicionais festas da aldeia. A partir deste momento a perturbação causada pelo comportamento de ambos, ele, através do dinheiro, buscando uma ingénua e primitiva glória no seu burgo; ela usando a sedução e a provocação erótica na fauna masculina aldeã, desencadeia um rol de acontecimentos desgraçados que o rebate final expressa eloquentemente. A paisagem existe com fauna, flora e tudo. É a que decorre das suas próprias gentes como penedos que rebolam num cataclismo através dos precipícios das montanhas. A rua já num rebuliço, a atrapalharem-se na porta, aos empurrões, primeiro chego eu! O carrão parou com um solavanco e de dentro, casaco de couro, botas de oficial, saiu o francês, a gozar a surpresa, a rir. Ó primo! O Manuel, esquecido do inchaço da mão, batia-lhe com ela nas costas, a remirá-lo, os outros apertando e empurrando para chegarem mais perto, a quererem tocar-lhe, mostrar-se, alguns envergonhados, respondendo embaraçados às graças dele, como se fosse milagre que ainda se lembrasse dos nomes e os tratasse por tu.
A água do chafariz cai às gotas, e os cântaros, alinhados ao longo do adro, esperam vez. As mulheres, amodorradas pela tarde, procuram a sombra, desbragadas, comidas de moscas, protegidas por xailes que foram da mãe, passados do preto ao verde surro, a assoar neles os fedelhos que o sol não queima. O meio-dia não é apogeu, é morte, o sino toca a reza sem alegria, pesado, as mãos fazem o sinal da cruz, as conversas param, o cão levanta-se, derreado, língua de fora, hesita antes de lamber a água que cai da pia. Passa ali!, Maria Moreira atira-lhe um pontapé, ergue o cântaro e põe outro sob a torneira. Até é capaz de ter raiva! Tem é fome. O dono que o sustente. Boa te vai! Se tivesse para ele! Quem? Chega-se, o cântaro apoiado na anca: Quem? E a outra num sussurro, os olhos a espiar: o Grande. Gastou tudo! A tia Rita, que também ouviu, persigna-se, arrepanha o xaile contra os ombros: sempre se disse!... Quem não se arruma... Nem para adubo. Oh!... É o que faz andar com elas!... Pobre do cão! Mais contra a parede, a evitar a porta do forno para que as outras não oiçam, a Moga conta pelos dedos: a uma viu o meu homem. Trezentos mil réis! Fora comes e bebes! Agora bem se coze. Nos palheiros, então, um regabofe! Duas. Mãe e filha! O do Gaitas quis tantas porcarias que até elas... Nossa Senhora!
O pasmo mata a conversa, separam-se, retoma o cântaro que tinha pousado no chão e vai rua abaixo curvada com o peso, aproveitando a sombra, cismática, mas se lhe pergunta não diz, quantas vezes terá também, e então lá por longe aos meses, a dizer que não tem sorte, que ganha pouco... Entra de través para não bater na ombreira e o fedor da loja das bestas faz-lhe voltar a cara, passa, sobe a escada, entorna a água na talha e senta-se, acabada de forças, as mãos a amparar o ventre. Dar-lhes de comer é que custa!... As camas ao longo da parede, defronte do lume, separadas dele pelo escano e pela mesa. No outro lado, atrás da cantareira, a lenha, duas tábuas a fazer de armário, a arca do pão, entre as camas a arca da roupa e o luxo do casamento: o lavatório com bacia de esmalte. Bem precisava de pôr outros jornais a cobrir a parede, que os ratos comem tudo. Dantes bastava pedir, mas agora vendem-nos, não se dá nem aos pobres, na tenda são a cinco tostões o quilo. Por isso não tinha querido a mordomia e se lha oferecessem outra vez bem teria de dizer que não. E eles!... Esfarrapados, sem camisa, alguns nem meias traziam nos pés, mas vinha a festa e os lordes deitavam-se às mulheres da vida, perdiam a vergonha. Que cansada estou, meu Deus! Que cansada! As mezinhas e as rezas não ajudavam, engravidava, és como as coelhas, às ninhadas, com este seis, um fora, um dentro... Quando nasceram os gémeos julgou que a matava, como se a culpa fosse dela. As caras que fez!... Mas chamou o médico. Olha, perdido por dez!... Tinha visto a morte. As pernas inchadas, doridas das voltas à igreja, de joelhos, sem chumaços, só Nosso Senhor sabia o que lhe tinha custado, há mais de três semanas e ainda não podia tirar as ligaduras. Estendida na sacristia, o padre zangado, de cá para lá, vossemecê bem sabe que não é assim que se pede a Deus! Assim ou assado... Nem pão nem batatas, a tulha rapada, dias compridos, ruins a passar. A suspeita repentina fê-la pôr em pé, mas não se lembrava e mordeu os dedos com o esforço de recordar se as trazia com ele na carteira. Entre a roupa? Eram duas notas de quinhentos... Deitou a correr, o outro cântaro havia de estar cheio, não esperava pela noite, ia à Ladeira perguntar-lho, nem a outra lhe importava, nem a pontada, queria saber. Estás como a cera!» In José Rentes de Carvalho, o Rebate, 1971, Quetzal Editores, 2012, ISBN: 978-989-722-005-0.

Cortesia de QuetzalE/JDACT