«As
cortinas estavam abertas. Vozes enchiam-lhe o pensamento. Uma criança perdida,
a chorar; duas crianças. Três... Durante algum tempo, Jess permaneceu
absolutamente imóvel, fitando, perplexa, um esguio raio de Sol que percorria
devagar o quadro pendurado na parede. Um quadro pintado por ela. O seu retrato
da floresta que existia atrás da casa da irmã, com as folhas tocadas de fogo pelas
primeiras geadas de Outono. Havia nele magentas e carmesins que não se
recordava de ter visto antes, embora ela mesma o tivesse pintado. Pormenores de
uma beleza extraordinária; matizes de sombra que, sem aquele foco de luz, nunca
teria apreciado com atenção. Porquê? Por que razão não o contemplara
devidamente, como agora? Por que nunca o vira em toda a sua glória? E onde
estavam as crianças? Ao virar a cabeça para espreitar pela janela, sentiu uma
vertigem de náuseas. Gemeu, o quadro e o sonho varrendo-se-lhe do pensamento.
De fora, chegava-lhe o ruído do trânsito, à distância, afluindo aos semáforos
do cruzamento da High Street, parando por momentos e tornando a fluir. Quando
se atreveu a abrir os olhos de novo, o raio de Sol seguira caminho e o quadro
regressara à sua sombra habitual. Soerguendo-se com dificuldade, olhou de
relance para o relógio na cabeceira da cama. Mer…! Meio-dia. Não admirava que
tudo no quarto lhe parecesse diferente. Com um suspiro, lançou as pernas para
fora da cama, a cabeça a andar à roda. Teria bebido muito na noite anterior?
Levantando-se com esforço, entreviu o seu reflexo no espelho e parou,
horrorizada. O cabelo louro, pelos ombros, estava num desalinho; os olhos,
normalmente de um azul-pálido-acinzentado, raiados de sangue e um pouco
inchados. Quando o seu olhar se desviou para a parte de baixo do corpo, gelou, em
estado de choque. A camisa nova, bonita, que usara na festa rasgara-se
praticamente ao meio; o soutien fora puxado para baixo dos seios; a saia
arrepanhada até à cintura. Olhando-se de cima a baixo, incrédula, passou um
dedo pela nódoa negra azulada que lhe aparecera na coxa, pelo arranhão ensanguentado
na barriga. Descobriu mais nódoas negras nos braços. Céus! O que me aconteceu? As
palavras pairaram, mudas, no interior do quarto, enquanto Jess observava
atentamente o seu reflexo, devolvendo-lhe o olhar. Com um ligeiro cambaleio,
dirigiu-se à porta e, segurando-se ao caixilho, espreitou lá para fora. Sobre a
mesa de centro, na sala de estar, viu dois copos manchados de vinho tinto. Uma
garrafa vazia jazia, deitada, por debaixo da mesa. Quem quer que tivesse estado
com ela no apartamento, na noite anterior, já não estava ali; nem na cozinha ou
na casa de banho. A porta da frente encontrava-se fechada. Com mãos trémulas,
examinou as fechaduras. Ninguém as arrombara. Quem quer que tivesse estado ali
dentro com ela não forçara a entrada. Fora certamente convidado a entrar. Jess
tinha ido à festa de fim de trimestre do colégio, disso recordava-se vagamente.
Nada mais. O que bebera na festa? Onde fora depois da noite de discoteca? Com
quem? Não conseguia lembrar-se de nada.
À
hora a que chegara, a festa de fim de trimestre estava ao rubro. O átrio de
desporto do Sixth Form College convertera-se num turbilhão de luzes giratórias.
O barulho era ensurdecedor. Jess tinha parado diante das portas duplas, abertas
ao ar húmido daquela noite de Verão, relutante em entrar. Queria colar as mãos
aos ouvidos, queria virar costas e correr para longe, qualquer coisa que não
fosse mergulhar na massa densa de corpos transpirados onde pairava o odor
opressivo a perfume barato, água-de-colónia, beatas, erva, suor e álcool. Ainda
não tinham conseguido revistar todos os miúdos. E de que serviria? Vendiam-se
bebidas dentro do átrio e, por lei, metade deles já podia beber. Olá,Jess! Uma figura
emergiu da escuridão fervilhante. Dan Nicolson, o chefe do departamento dela,
saiu para a zona de estacionamento em macadame asfáltico, à porta do átrio, com
um sorriso cansado. Estou a ficar velho para isto! A T-shirt demasiado garrida desmentia as suas palavras; aquela era a
única noite do ano em que Dan permitia que o vissem no colégio com um traje
menos formal. Ela riu-se. Eu sempre fui demasiado velha para isto, Dan. Desde o
dia em que nasci. Estás cheio de estilo. Dan trazia o cabelo curto, cinzento-rato,
espetado para cima, e os olhos castanhos escondidos atrás de um par de óculos
escuros de marca. Ouvi dizer que tiraste a palha mais curta. Tens de ficar até
ao fim? E separar os miúdos em plena cópula! Olhou para o céu, simulando
exaspero. A menos que consiga convencer alguém a fazê-lo por mim. Queres que vá
buscar-te uma bebida?, perguntou, puxando os óculos para cima da cabeça.
Jess
aquiesceu. Não havia como oferecer resistência à tempestade de ruído que saía
por aquela porta. Ela sabia muito bem qual seria a sensação no interior, mas
tinha dito que vinha e prometera uma dança a uma pessoa. Ashley. Ash era o seu
aluno mais promissor. O mais promissor em muitos anos. Destinado a ter nota
máxima em todas as cadeiras que frequentava, o jovem jamaicano era alguém em
quem ela investira muito tempo e energia, e já o via ao longe, com as suas
mesas de mistura em cima do palco, a partir o recinto. Só teria de assegurar-se
de que ele também a via, acenar, levantar o polegar em jeito de reconhecimento,
encolher os ombros para lhe mostrar que não era preciso dançar, coisa que de
qualquer modo lhe parecia quase impossível no meio daquela multidão compactada,
e depois sairia discretamente». In Barbara Erskine, A Princesa Guerreira, 2008,
tradução de Catarina Almeida, Grupo Planeta, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2009/2010,
ISBN 978-989-657-113-9.
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