Um
acontecimento alvoraçante
«13
de janeiro de 1813. Toda a gente, na cidadezinha de São Paulo, engalanara-se
com espavento. Não houve matrona que se não enfeitasse das suas velhas jóias.
Não houve moça que se não alindasse de galantezas e tafularias. Tudo isso,
tanto primor e garridice, para assistir a um acontecimento alvoroçante, inteiramente
inesperado, que viera abalar com ruído, aquela pequenina sociedade de
província: o casamento do alferes Felício Pinto Coelho Mendonça, moço fidalgo
da Casa Real, com a encantadora Domitila Castro, última filha do coronel João Castro
Canto Melo. Por isso, no casarão da Rua do Ouvidor, onde morava a noiva, burburinhava,
há dias já, tremenda fervedura de arranjos e preparativos. O velho João Castro
sempre se gabara dos seus avós. Gloriava-se, frequentes vezes, de ser fidalgo
de lei. A sua mulher, dona Escolástica Bonifácia, apregoava-se, também, com
orgulho, descendente dos Toledo Ribas. Eram eles, não havia dúvida, gente de
sangue limpo, honrada, com larga parentela na cidade e na província. E ambos,
no casamento da caçula, timbraram em oferecer aos amigos bela noitada de
festança grossa, com bródio e baile, que estivesse à altura do seu sangue e do
seu nome. Que rebuliço o que ia pela casa adentro! Dona Escolástica, muito
atarefada, não cessava de vascolejar, de arejar, de espanejar. Era um
destramelar armários, um remexer empoeiradas arcas, um revirar canastras, um
escancarar baús, um arrancar lá do fundo de tudo isso, para expor ao sol, os
preciosos guardados antigos, as coisas nobres e magníficas, as largas toalhas
de crivo, as rendas de bilro, os panos bordados, a prataria do Reino, as peças
de porcelana. Sobretudo, com muitos mimos, era um esfregar aquelas pesadas
louças de friso azul, tão faladas na cidade, que a boa velha guardava com
ciúmes, enternecidamente, para os graves regabofes da família. Quando, em meio
àquela lufa-lufa, um canto de sala parecia mais despido, ou faltavam, acolá,
enfeites mais vistosos, logo a cuidadosa dona Escolástica, com o seu pronto
expediente, gritava para um dos moleques da cozinha: Dito! Corra à casa de
prima Angélica e diga assim para ela me emprestar o jarrão vidrado da sala de
fora. Os moleques e os escravos, à busca de jarrões vidrados, corriam à Rua do Ouvidor.
Da Rua do Ouvidor à Rua do Cotovelo. Da Rua do Cotovelo à Rua da Princesa.
Enquanto isso, na cozinha, entre as mucamas, ia largo e febril atarefamento.
Despejavam-se pacotes de araruta. Besuntavam-se forminhas para bons-bocados.
Desenferrujavam-se as rosetas de florear sequilhos. Folheava-se a massa das
queijadas. Recheavam-se os pastéis de Santa Clara. Pingavam-se assadeiras de
suspiro. E as raparigotas, brandindo garfos célebres, faziam ecoar sonoramente,
no bojo das terrinas, furioso bater de gemas e de claras de ovo. Essa
atordoante trabalhadeira, tão desusado empenho em preparar a noite de gala,
revelavam bem o júbilo que dava aos pais o casamento da caçula. Esse casamento,
entretanto, tivera curiosa trama. Fora um caso violento de paixão. Romance de
amor tão fulminante, tão inesperado, que espantou a todos na cidade. A história
foi assim: Domitila, a Titília, como
lhe chamavam os de casa, era uma criaturinha perturbante, linda boneca de dezasseis
anos, leve como pluma, botão de rosa pelo amanhecer. Tinha o talhe fino, a
cinturinha breve, ar de graciosa petulância. Que primor de tentações! Os
cabelos eram negros, profundamente negros, encaracolando-se num donaire petulante. Olhos também negros,
negríssimos, dum fulgor líquido, que enchiam de quentura e brejeirice o moreno
róseo de seu rosto. A boca, vermelha, muito húmida, a cavar ao lado, quando ela
sorria, uma covinha gaiata, tentadora, que enlouquecia a rapaziada do tempo. E
não foram poucos os que enlouqueceram! Toda a gente sabia que Pedro Gonçalves Andrade,
primo e colaço do juiz de casamentos, passava noites inteiras, de violão em
punho, a entoar modinhas e lundus às janelas da rapariga. E era de ver-se, nos
bailes, o Aires Cunha, sobrinho do almoxarife da Real Fazenda! O rapaz grudado
acintosamente às saias da pequena, vivia tão junto dela, tão cioso dela, que a
cidade inteira, com maldade, botou-se a linguajar daquele caso..
E a
briga do Moraizinho? Foi no botequim da Princesa, no Largo da Pólvora, em dia
de procissão de São Jorge. O rapazola engalfinhou-se violentamente com o Bento
Furquim, um atrevidaço, namoriscador da pequena. Lá se foi com ele aos bofetões
e sopapos, numa fúria. Tão áspera cresceu a rixa, tão brutal, que acabaria de
certo em tiro de trabuco se o bom do padre Bernardo Pureza Claraval, que por
ali passava, não acudisse a tempo de separá-los. Nesse mesmo dia, ao escurecer,
depois das vésperas, o bondoso cura procurou o velho João Castro. Narrou-lhe a
briga do Moraizinho. Avisou-o com prudência: coronel! Vosmecê precisa tomar
tento. Isto não acaba bem... Mas que hei-de eu fazer, senhor pároco? Que hei de
eu fazer? Que há-de fazer? Homessa... Pois é casar a rapariga. Casá-la antes
que a rapaziada se destripe. Aquilo não é gente! Aquilo é demónio, coronel,
aquilo é demónio... Cruzes!» In Paulo Setúbal, A marquesa de Santos, (1925-1935,
Wikipedia, Editora Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-134-1,
978-858-130-143-3.
Cortesia
de Wikipedia/EGeraçãoE/JDACT