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«(…) Portanto, aquele
era o senhor e amo, a pessoa que Filipe serviria até à morte na busca do seu
bem e para lhe prevenir o mal. Era um homem de quarenta anos, balofo e, se não
fossem as roupas ricas, seria confundido com um mercado, talvez até um
negociante. O nariz e o queixo eram bolbosos e a boca grande, aquela boca
enorme que a beijara, tinha lábios grossos. O cabelo era fraco, esparso e
recusava-se a encaracolar-se como exigia a moda. Provavelmente, era necessário agradecer
ou mesmo recompensar muitos pelos seus esforços em fazer com que aquele monte
de carne parecesse um rei. Bem-vinda, bem-vinda, nobre princesa. Esperamos que
façais deste palácio o vosso lar durante muitos dias. Joana pensou que preferia
que tal não acontecesse, apesar de ter sido muito bem-recebida na casa do seu
conterrâneo, o conde de Cabra, onde estava alojada. Queria prosseguir viagem. Sua
Majestade, a minha querida esposa, providenciará muitas diversões.
Infelizmente, eu e o arquiduque temos de nos ocupar com os sérios fardos do
Estado, com algum tempo, é claro, para o desporto e o divertimento. E lançou
sobre ela o seu sorriso gordo e desagradável. Mas tendes de conhecer a
rainha e a nossa princesinha. Duquesa, escoltai a princesa Joana.
Sentiu-se invadida pela
ira. Mais uma vez era afastada. Que Filipe continuasse a atrever-se a discutir
o que quer que fosse sem ela era ridículo. Com o olhar desafiou Filipe, mas
este desviou o seu. Uma mão firme, a da duquesa, agarrou-a pelo cotovelo,
dizendo-lhe que fora dispensada. Joana soltou-se, levando deliberadamente o seu
tempo a fazer a vénia, antes de a seguir. Não se deixaria apressar! As paredes
dos aposentos da rainha estavam cobertas com tecido de damasco branco e
dourado. Havia pesados cortinados vermelhos e as cadeiras e bancos ostentavam almofadas
de veludo verde. Ana da Bretanha, rainha de França, estava sentada na cadeira
de Estado sob um dossel de veludo vermelho; as aias agrupavam-se de ambos os
lados do trono. A cena fora preparada meticulosamente para fazer com que a visitante
se sentisse rebaixada. Todavia, Joana tinha uma missão. A Espanha dependia
dela. Avançou até ao estrado para fazer a mesma, como era exigido pelo
protocolo, quando a mão da duquesa reapareceu, desta vez agarrando-a pelo
antebraço e obrigando-a a ajoelhar-se, recordando-lhe que não passava da mulher
de um vassalo. Joana respirou pausadamente. Seria paciente, pois o seu tempo chegaria.
Um dia seria rainha, e de um país muito mais poderoso que a França. Levou um
momento a acalmar-se e depois levantou-se. Não ia ser uma visita fácil. Como
iria sobreviver aos próximos dias, ou sabia-se lá quanto tempo o marido ia
decidir ficar ali? Iria sofrer a tormenta constante de suspeitar que Luís
conspirava contra Espanha e que Filipe se mostraria ansioso por servir o amo, como
um vulgar cão fiel. Entretanto, ela partilharia a companhia de damas que seriam
profundamente entediantes ou buscariam as atenções do seu marido. Não iria
sentir-se feliz. Levou involuntariamente a mão à testa.
Senhoras! A rainha bateu
palmas. Antes que seja demasiado tarde, temos de trazer a nossa querida
princesa Cláudia para conhecer a sua sogra. Joana enterrou as unhas nas palmas
das mãos e forçou um sorriso. Trouxeram-lhe a criança, uma trouxa minúscula de
saias de seda branca, cheias de fitas e laços, num esplendor de folhos e
bordados, enfeitadas com amuletos. Aquela criaturinha era a causa da enorme disputa
entre a Espanha, a Flandres e a Áustria. Aquela coisinha minúscula a seus pés,
que fora prometida em contrato de casamento ao seu filho Carlos, dera origem a
uma tremenda discussão entre ela e Filipe. Ao baixar o olhar sobre a inocente,
incapaz de sentir por ela qualquer afeição, a criança lançou um grande uivo e
começou a gritar e a berrar, escondendo o rostinho vermelho entre as saias da
ama. Isto é muito inquietante. A princesa Cláudia nunca se portou assim. A
rainha Ana, irada pelo facto de o seu momento de glória ter sido tão breve,
apressou-se a mandar retirar a filha. A sua princesinha de exposição, destinada
a tanta opulência e chave de grandes riquezas para a França, ficara reduzida a
uma boca balbuciante, um nariz ranhoso e um rosto molhado. Joana ergueu as
mãos, pedindo perdão pela infanta: não vos preocupeis, Senhora. Eu também tenho
três filhos e compreendo muito bem estas coisas. Mas vejo que estais
indisposta. Com a vossa permissão, retiro-me. E, sem esperar resposta, fez uma
vénia e saiu da sala, agradecendo a Cláudia o ataque de choro imprevisto. Por
momentos, chegou a gostar dela». In Linda Carlino, That Other Joana, 2007,
Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes,
ISBN 978-972-23-4231-5.
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