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As
Montanhas Negras do Alto Languedoc. Verão de 1207
«(…) Com uma prudência invulgar para os seus vinte e um anos, Raoul de Montvallant cobriu o cálice veneziano com a palma da mão e abanou a cabeça para o escudeiro que se inclinara para o voltar a encher. Não que lhe desagradasse o vinho; de facto, numa ocasião diferente, ele teria bebido tanto como todos os outros jovens presentes, mas nessa noite tinha uma boa razão para permanecer sóbrio. Deixou que o seu olhar insaciável se escapasse novamente para essa razão, a sua noiva, Claire, a quem fora prometido desde a infância. Na última vez que a vira, ela tinha um sorriso desdentado e lama na bainha do vestido, de chapinhar nas poças depois de um aguaceiro de Verão. Hoje, o seu sorriso era deslumbrante e completo. A bainha do seu vestido estava bordada não de lama mas com losangos de fio de ouro que cintilava contra um fundo de sumptuoso samito verde. O seu cabelo, deixado solto para proclamar a sua virgindade, brilhava como seda em fogo e Raoul queria passar os dedos pelas suas ondas para descobrir se era tão macio como parecia. Ela lançava-lhe constantemente rápidos olhares, e os seus olhos tinham o castanho opulento do mel dos bosques. Raoul tentou pensar em algo para dizer que não parecesse usado ou banal, mas deu por si completamente perdido. A linda criatura ao seu lado não apresentava qualquer semelhança com a rapariga magricela que ele recordava. A noção de que em breve estariam ambos a sós, na cama, e nus, roubava-lhe todos os pensamentos coerentes. Embora não tivesse vasta experiência com mulheres, Raoul visitara algumas vezes as maisons lupanardes de Toulouse, onde uma das meretrizes tivera o capricho de lhe ensinar que existia mais prazer para além da breve e rude simplicidade dos seus primeiros encontros. Claire, porém, era inocente, uma virgem, e não era provável que o viesse a ajudar, se ele se mostrasse desajeitado. Era também bastante desejável e ele ardia de desejo ao ponto de duvidar do seu próprio controlo. Estendeu a mão para o seu copo, depois lembrou-se de que este estava vazio por aquela mesma razão e pousou-a novamente sobre a mesa. Desejoso de a provar, não?, riu o padre Otho, o sacerclote que oficiara ao seu casamento na poeirenta e negligenciada capela do castelo. Não o condeno. Nem eu me importava de lhe pôr o freiol! Mordeu um doce de maçã e mastigou-o lascivamente. Raoul cerrou o punho e pensou em lançá-lo contra o rosto sobrealimentado do sacerdote. O padre Otho era um lúbrico glutão que cuidava dos seus próprios bolsos e prazeres acima das necessidades do seu rebanho, que, sob a sua desmazelada direcção, era pequeno e indiferente. Então ainda bem que fez um voto de celibato, ripostou Raoul. O sacerdote arrotou. Há sempre espaço para diferentes interpretações, no meu entender. Para conhecer o pecado, há que lutar com ele primeiro. Isso mesmo, rapaz, enche-o bem, enche-o bem! Fez um gesto imperativo para o escudeiro, depois ergueu o seu cálice a transbordar e inclinou-se para o pai de Raoul. Uma magnífica adega que aqui tem, meu senhor! Berenger Montvallant ofereceu a Otho um tépido sorriso que não se estendia aos seus olhos. E ele vai esvaziá-la antes de a noite terminar, murmurou Raoul para o pai quando a atenção do clérigo se desviou para uma bonita serviçal que atendia à sua noiva. Se ele não fosse meu primo em segundo grau e eu não tivesse prometido ao pai que lhe daria aqui um lugar, há muito tempo que o teria mandado embora, disse Berenger com uma careta. Será de admirar que os cátaros floresçam entre nós, quando selhas de banha como esta governam o clero?» In Elizabeth Chadwich, As Filhas do Graal, 1993, tradução de Ester Cortegano, Edições Chá das Cinco, 2013, ISBN 978-989-710-050-5.
«(…) Com uma prudência invulgar para os seus vinte e um anos, Raoul de Montvallant cobriu o cálice veneziano com a palma da mão e abanou a cabeça para o escudeiro que se inclinara para o voltar a encher. Não que lhe desagradasse o vinho; de facto, numa ocasião diferente, ele teria bebido tanto como todos os outros jovens presentes, mas nessa noite tinha uma boa razão para permanecer sóbrio. Deixou que o seu olhar insaciável se escapasse novamente para essa razão, a sua noiva, Claire, a quem fora prometido desde a infância. Na última vez que a vira, ela tinha um sorriso desdentado e lama na bainha do vestido, de chapinhar nas poças depois de um aguaceiro de Verão. Hoje, o seu sorriso era deslumbrante e completo. A bainha do seu vestido estava bordada não de lama mas com losangos de fio de ouro que cintilava contra um fundo de sumptuoso samito verde. O seu cabelo, deixado solto para proclamar a sua virgindade, brilhava como seda em fogo e Raoul queria passar os dedos pelas suas ondas para descobrir se era tão macio como parecia. Ela lançava-lhe constantemente rápidos olhares, e os seus olhos tinham o castanho opulento do mel dos bosques. Raoul tentou pensar em algo para dizer que não parecesse usado ou banal, mas deu por si completamente perdido. A linda criatura ao seu lado não apresentava qualquer semelhança com a rapariga magricela que ele recordava. A noção de que em breve estariam ambos a sós, na cama, e nus, roubava-lhe todos os pensamentos coerentes. Embora não tivesse vasta experiência com mulheres, Raoul visitara algumas vezes as maisons lupanardes de Toulouse, onde uma das meretrizes tivera o capricho de lhe ensinar que existia mais prazer para além da breve e rude simplicidade dos seus primeiros encontros. Claire, porém, era inocente, uma virgem, e não era provável que o viesse a ajudar, se ele se mostrasse desajeitado. Era também bastante desejável e ele ardia de desejo ao ponto de duvidar do seu próprio controlo. Estendeu a mão para o seu copo, depois lembrou-se de que este estava vazio por aquela mesma razão e pousou-a novamente sobre a mesa. Desejoso de a provar, não?, riu o padre Otho, o sacerclote que oficiara ao seu casamento na poeirenta e negligenciada capela do castelo. Não o condeno. Nem eu me importava de lhe pôr o freiol! Mordeu um doce de maçã e mastigou-o lascivamente. Raoul cerrou o punho e pensou em lançá-lo contra o rosto sobrealimentado do sacerdote. O padre Otho era um lúbrico glutão que cuidava dos seus próprios bolsos e prazeres acima das necessidades do seu rebanho, que, sob a sua desmazelada direcção, era pequeno e indiferente. Então ainda bem que fez um voto de celibato, ripostou Raoul. O sacerdote arrotou. Há sempre espaço para diferentes interpretações, no meu entender. Para conhecer o pecado, há que lutar com ele primeiro. Isso mesmo, rapaz, enche-o bem, enche-o bem! Fez um gesto imperativo para o escudeiro, depois ergueu o seu cálice a transbordar e inclinou-se para o pai de Raoul. Uma magnífica adega que aqui tem, meu senhor! Berenger Montvallant ofereceu a Otho um tépido sorriso que não se estendia aos seus olhos. E ele vai esvaziá-la antes de a noite terminar, murmurou Raoul para o pai quando a atenção do clérigo se desviou para uma bonita serviçal que atendia à sua noiva. Se ele não fosse meu primo em segundo grau e eu não tivesse prometido ao pai que lhe daria aqui um lugar, há muito tempo que o teria mandado embora, disse Berenger com uma careta. Será de admirar que os cátaros floresçam entre nós, quando selhas de banha como esta governam o clero?» In Elizabeth Chadwich, As Filhas do Graal, 1993, tradução de Ester Cortegano, Edições Chá das Cinco, 2013, ISBN 978-989-710-050-5.
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