sábado, 12 de março de 2016

Infiel. Ayaan Hirsi Ali. «A resposta é não: prefiro continuar viva. No entanto, certas coisas precisam de ser ditas, e há ocasiões em que o silêncio é cúmplice da injustiça»

Cortesia de wikipedia e jdact


«Certa manhã de Novembro de 2004, Theo van Gogh levantou-se para ir trabalhar na sua produtora de cinema em Amsterdão. Pedalando a velha bicicleta preta, seguiu por uma rua central. A uma porta, esperava-o um marroquino munido de uma arma de fogo e duas facas de açougueiro. Quando Theo ia pela Linnaeusstraat, Muhammad Bouyeri aproximou-se, sacou a arma e baleou-o várias vezes. Theo caiu da bicicleta e, cambaleando, foi para o outro lado da rua, mas logo tombou. Bouyeri seguiu-o. Theo pediu: será que não podemos conversar?, mas o marroquino disparou outros quatro tiros. Em seguida, degolou-o com uma das facas de açougueiro. Com a outra, cravou-lhe no peito uma carta de quatro páginas. A carta era endereçada a mim.
Dois meses antes, Theo e eu tínhamos feito um curta-metragem intitulado Submission, part. 1. Eu tinha a intenção de um dia filmar a segunda parte. (Theo avisou que só participaria se no segundo filme houvesse um pouco de humor!) A primeira parte falava em desafio, nas mulheres muçulmanas que passam da submissão total a Deus a um diálogo com a divindade. Mulheres que rezam, mas, em vez de baixar os olhos, erguem-nos para Alá, com as palavras do Alcorão tatuadas na pele. Dizem-Lhe sinceramente que, se essa submissão seguir causando-lhes tanta miséria e Ele permanecer calado, elas serão capazes de deixar de se submeter. Há a mulher açoitada por ter cometido adultério; outra entregue em matrimónio a um homem que ela detesta; outra espancada regularmente pelo marido; e outra que o pai repudia ao saber que o irmão dela a estuprou. Os perpetradores justificam cada abuso em nome de Deus, citando os versículos do Alcorão agora escritos no corpo dessas mulheres. Elas representam centenas de milhares de muçulmanas em todo o mundo. Theo e eu sabíamos do perigo de fazer o filme. Mas ele era um homem corajoso, um guerreiro, por improvável que possa parecer. Também era muito holandês, e nenhuma nação do mundo é mais profundamente apegada à liberdade de expressão do que a Holanda. A ideia de tirar o seu nome dos créditos do filme por motivos de segurança o enfurecia. Certa vez ele disse-me: se eu não puder assinar meu próprio filme na Holanda, então a Holanda já não é a Holanda, e eu já não sou eu. As pessoas perguntam-me se estou com vontade de morrer, já que insisto tanto em dizer o que digo. A resposta é não: prefiro continuar viva. No entanto, certas coisas precisam de ser ditas, e há ocasiões em que o silêncio é cúmplice da injustiça.
Esta é a história da minha vida. Um registo subjectivo das minhas lembranças pessoais, tão próximas da exactidão quanto me é possível; o meu relacionamento com o resto da minha família ficou de tal modo esfrangalhado que já não posso refrescar a memória pedindo-lhes ajuda. Trata-se da história do que vivenciei, do que vi e de porque penso como penso. Cheguei à conclusão de que é útil e talvez até importante contar esta história. Quero deixar claras algumas coisas, rectificar certos relatos e também falar em outro tipo de mundo, contar como ele é. Nasci na Somália. Fui criada na Somália e na Arábia Saudita, na Etiópia e no Quénia. Fixei-me na Europa em 1992, aos vinte e dois anos de idade, e integrei o Parlamento holandês. Fiz um filme com Theo, agora vivo cercada de guarda-costas e viajo em carro blindado. Em Abril de 2006, um tribunal holandês mandou-me sair do abrigo de segurança que eu alugava do Estado. O juiz decidiu que meus vizinhos tinham o direito de alegar que se sentiam inseguros com a minha presença no prédio. Eu já havia tomado a decisão de me mudar para os Estados Unidos antes que irrompesse o debate acerca da minha cidadania holandesa. Este livro é dedicado à minha família e também aos milhões e milhões de muçulmanas reduzidas à sujeição.

Quem é você? Sou Ayaan, filha de Hirsi, filho de Magan. Estou com a minha avó, sentada numa esteira debaixo de um talai. Atrás de nós, a casa; e a nossa única protecção contra o sol que abrasa a areia branca são os ramos do talal. Continue, diz ela, encarando-me. E Magan era filho de Isse. Que mais? Isse era filho de Guleid, filho de Ali. Filho de Wafays. Filho de Muhammad. Ali. Umar. Hesito um instante. Osman. Mahamud. Respiro fundo, cheia de orgulho. Bah?, pergunta minha avó. De que grupo? De Bah Ya'qub, Garab-Sare. Digo o nome da esposa mais poderosa de Osman Mahamud: a filha de Ya'qub, aquela, a do ombro mais alto. Minha avó acena com a cabeça, relutante. Eu me saí bem, para uma garotinha de cinco anos. Consegui enumerar os meus ancestrais até trezentos anos antes, a parte crucial. Osman mahamud é o nome do subclã do meu pai e, portanto, o meu. Aquele a que pertenço, aquele que sou. Depois, à medida que eu for crescendo, minha mãe vai me persuadir, vai me castigar até aprender a genealogia do meu pai, recuando oitocentos anos, até o grande clã dos darod. Eu sou uma darod, uma harti, uma macherten, uma osman mahamud. Sou da estirpe chamada Ombro Mais Alto. Sou uma magan». In Ayaan Hirsi Ali, Infiel, 2006, tradução de Luís Araújo, Editora Schwarcz, Companhia das Letras, 2007, ISBN 978-853-591-109-1.

Cortesia de CdasLetras/JDACT