Cortesia
de wikipedia e jdact
«Certa
manhã de Novembro de 2004, Theo van Gogh levantou-se para ir trabalhar na sua
produtora de cinema em Amsterdão. Pedalando a velha bicicleta preta, seguiu por
uma rua central. A uma porta, esperava-o um marroquino munido de uma arma de
fogo e duas facas de açougueiro. Quando Theo ia pela Linnaeusstraat, Muhammad
Bouyeri aproximou-se, sacou a arma e baleou-o várias vezes. Theo caiu da
bicicleta e, cambaleando, foi para o outro lado da rua, mas logo tombou.
Bouyeri seguiu-o. Theo pediu: será que não podemos conversar?, mas o marroquino
disparou outros quatro tiros. Em seguida, degolou-o com uma das facas de
açougueiro. Com a outra, cravou-lhe no peito uma carta de quatro páginas. A
carta era endereçada a mim.
Dois
meses antes, Theo e eu tínhamos feito um curta-metragem intitulado Submission,
part. 1. Eu tinha a intenção de um dia filmar a segunda parte. (Theo avisou
que só participaria se no segundo filme houvesse um pouco de humor!) A primeira
parte falava em desafio, nas mulheres muçulmanas que passam da submissão total
a Deus a um diálogo com a divindade. Mulheres que rezam, mas, em vez de baixar
os olhos, erguem-nos para Alá, com as palavras do Alcorão tatuadas na pele.
Dizem-Lhe sinceramente que, se essa submissão seguir causando-lhes tanta
miséria e Ele permanecer calado, elas serão capazes de deixar de se submeter. Há
a mulher açoitada por ter cometido adultério; outra entregue em matrimónio a um
homem que ela detesta; outra espancada regularmente pelo marido; e outra que o
pai repudia ao saber que o irmão dela a estuprou. Os perpetradores justificam
cada abuso em nome de Deus, citando os versículos do Alcorão agora escritos no
corpo dessas mulheres. Elas representam centenas de milhares de muçulmanas em
todo o mundo. Theo e eu sabíamos do perigo de fazer o filme. Mas ele era um homem
corajoso, um guerreiro, por improvável que possa parecer. Também era muito
holandês, e nenhuma nação do mundo é mais profundamente apegada à liberdade de
expressão do que a Holanda. A ideia de tirar o seu nome dos créditos do filme
por motivos de segurança o enfurecia. Certa vez ele disse-me: se eu não
puder assinar meu próprio filme na Holanda, então a Holanda já não é a Holanda,
e eu já não sou eu. As pessoas perguntam-me se estou com vontade de morrer,
já que insisto tanto em dizer o que digo. A resposta é não: prefiro continuar
viva. No entanto, certas coisas precisam de ser ditas, e há ocasiões em que o
silêncio é cúmplice da injustiça.
Esta
é a história da minha vida. Um registo subjectivo das minhas lembranças
pessoais, tão próximas da exactidão quanto me é possível; o meu relacionamento
com o resto da minha família ficou de tal modo esfrangalhado que já não posso
refrescar a memória pedindo-lhes ajuda. Trata-se da história do que vivenciei,
do que vi e de porque penso como penso. Cheguei à conclusão de que é útil e
talvez até importante contar esta história. Quero deixar claras algumas coisas,
rectificar certos relatos e também falar em outro tipo de mundo, contar como
ele é. Nasci na Somália. Fui criada na Somália e na Arábia Saudita, na Etiópia
e no Quénia. Fixei-me na Europa em 1992, aos vinte e dois anos de idade, e
integrei o Parlamento holandês. Fiz um filme com Theo, agora vivo cercada de
guarda-costas e viajo em carro blindado. Em Abril de 2006, um tribunal holandês
mandou-me sair do abrigo de segurança que eu alugava do Estado. O juiz decidiu
que meus vizinhos tinham o direito de alegar que se sentiam inseguros com a
minha presença no prédio. Eu já havia tomado a decisão de me mudar para os
Estados Unidos antes que irrompesse o debate acerca da minha cidadania holandesa.
Este livro é dedicado à minha família e também aos milhões e milhões de
muçulmanas reduzidas à sujeição.
Quem
é você? Sou Ayaan, filha de Hirsi, filho de Magan. Estou com a minha avó,
sentada numa esteira debaixo de um talai.
Atrás de nós, a casa; e a nossa única protecção contra o sol que abrasa a areia
branca são os ramos do talal. Continue, diz ela, encarando-me. E Magan era
filho de Isse. Que mais? Isse era filho de Guleid, filho de Ali. Filho de
Wafays. Filho de Muhammad. Ali. Umar. Hesito um instante. Osman. Mahamud. Respiro
fundo, cheia de orgulho. Bah?, pergunta minha avó. De que grupo? De Bah Ya'qub,
Garab-Sare. Digo o nome da esposa mais poderosa de Osman Mahamud: a filha de
Ya'qub, aquela, a do ombro mais alto. Minha avó acena com a cabeça, relutante.
Eu me saí bem, para uma garotinha de cinco anos. Consegui enumerar os meus
ancestrais até trezentos anos antes, a parte crucial. Osman mahamud é o nome do
subclã do meu pai e, portanto, o meu. Aquele a que pertenço, aquele que sou. Depois,
à medida que eu for crescendo, minha mãe vai me persuadir, vai me castigar até aprender
a genealogia do meu pai, recuando oitocentos anos, até o grande clã dos darod. Eu sou uma darod, uma harti, uma macherten, uma osman mahamud. Sou da estirpe chamada Ombro Mais Alto. Sou
uma magan». In Ayaan Hirsi Ali, Infiel, 2006,
tradução de Luís Araújo, Editora Schwarcz, Companhia das Letras, 2007, ISBN
978-853-591-109-1.
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