segunda-feira, 28 de março de 2016

Uma pequena vila. Galveias. José Luís Peixoto. «Quando voltou para o campo, aturando os caprichos da motorizada, o Cebolo passou por grupos que avançavam a pé e de bicicleta. Foi ultrapassado por motas mais adolescentes e, mesmo à beira de chegar…»

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«Escuta lá, de quem é que tu és filho? Sou o filho do Peixoto da serração e da Alzira Pulguinhas»

Janeiro de 1984
«(…) A caminho da escola, os cachopos iam todos a coçar as ramelas e a torcer o nariz. Estavam ensonados e rabugentos com aquela manhã tão cinzenta, tão sem consideração pelas suas arrelias. Já na sala, arrumaram-se ao aquecedor de gás, a professora deu licença, e deram soltura às suas teorias. Forasteira, a professora ficou banzada com as cabeças dos cachopos e, nessa manhã, mandou-os para o recreio mais cedo. Achou que precisavam de correr. De madrugada, no alto da rua de São João, os homens e as mulheres firmaram-se e subiram com desenvoltura para os reboques dos tractores. E 1á seguiram para o campo sem grande paleio, sisudos, sentados em fardos de palha, a agitarem-se conforme os buracos da estrada e, se não fosse pelo cheiro cinzento a enxofre, quase a duvidarem que a noite anterior tivesse acontecido. As velhas, viúvas ou não, vinham para a porta de casa com a sua vassoura de mato. De rabo para o ar, começavam a varrer. Passava um instante e levantavam a cabeça para olhar em redor. Queriam dar fé e perceber se havia novidades. Esta incerteza demorou até meio da manhã.
Na torre da igreja, os sinos deram as dez. Estava a rodar essa música de sinos em perfeita afinação quando o Cebolo entrou de motorizada na vila. Era um motor preguiçoso, a gemer uma surdina de besouro, a falhar nas subidas, incerto, espécie de motor bêbado. Trazia o capacete enfiado na cabeça, mas levava a correia desapertada. Passava de olhos muito abertos, um mais aberto do que o outro. Quem o via, tão compenetrado, suspeitava. Quando parou no terreiro e pôs â motorizada na espera, os homens que estavam à porta do café do Chico Francisco ficaram só a olhar para ele. Com vagar, aproximou-se, deixou que passasse um momento e deu-lhes a notícia. Tresandava a uma mistura de enxofre e borregum. Ficaram doidos. Dois deles pegaram logo nas motas e seguiram juntos. Os outros espalharam-se: um desceu pela rua da sociedade, outro desceu pela rua da Fonte Velha, outro subiu em direcção ao Alto da Praça, outro foi para o lado do São Pedro. O Cebolo pouco se mexeu. A vitrina do café do Chico Francisco estava coberta por um tapume velho de contraplacado. Esse fundo deu ainda mais gravidade ao olhar do Cebolo. A notícia foi alastrando a partir do terreiro, como um incêndio, ou como água da chuva nas regadeiras, ou como a notícia de uma morte, ou como uma lata de tinta entornada.
Quando voltou para o campo, aturando os caprichos da motorizada, o Cebolo passou por grupos que avançavam a pé e de bicicleta. Foi ultrapassado por motas mais adolescentes e, mesmo à beira de chegar, foi ultrapassado pelo automóvel do doutor Matta Figueira. Quando essa nuvem de pó se desfez, o Cebolo teve de parar a motorizada para acreditar no que estava a ver. Dezenas de pessoas, centenas talvez, enchiam a herdade do Cortiço, atravessavam-na a passos largos. Contra o ligeiro abrandamento das ervas altas, dirigiam-se à cratera. Muitos rodeavam-na já. Julgando-se abandonadas, as cabras do Cebolo admiravam-se com aquele movimento de gente, levantavam um olhar de medo, coitadinhas, podiam mesmo ensaiar uma fuga espantada se alguém fizesse um gesto mais brusco, mas não chegavam a sair do lugar.
O terreno apresentava uma cratera redonda e inédita: um círculo com um diâmetro de uma dúzia de metros, mais ou menos, abatido a cerca de um metro abaixo do resto da terra. Era como se um martelo gigante tivesse afundado aquele disco. No centro, a coisa sem nome, imóvel, vaidosa, a exibir-se. Aqueles que tinham descido o degrau e feito menção de se aproximar, não aguentaram o calor. Mesmo à distância, a coisa sem nome difundia um calor ardente, que corava as faces e secava a boca. O cheiro a enxofre era quase irrespirável. Muitos tapavam a boca com lenços de assoar ou com a palma da mão. Ali, nunca ninguém tinha visto nada que pudesse comparar com aquilo. Rodeado por alguns dos seus filhos, o Cabeça estava lá, embasbacado. Se calhar, é um bocado de sol, disse». In José Luís Peixoto, Galveias, Quetzal Editores, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-722-179-8.

Cortesia de Quetzal/JDACT