quinta-feira, 3 de março de 2016

O Enviado. Maria Isabel Barreno. «E comprou, comprou. As acções, cuja subida era mero produto de um pequeno grupo de especuladores cuidadosamente accionados por Hermes, caíram a pique. O inquisidor ficou arruinado»

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O enviado
«(…) Como se confirmasse tanta beatitude o Guia providenciou os meios para que o inquisidor pudesse levantar dinheiro. Este introduziu o cartão, carregou nos botões, seguindo as instruções do Guia. E por iniciativa própria também orou, invocou poderes e graças divinas. Quando saiu o dinheiro exclamou mais uma vez Senhor eu não sou digno, frase que ele considerava uma espécie de abre-te sésamo, e sentiu-se imensamente confirmado na sua importância. Durante alguns dias o Guia acompanhou-o, fornecendo-lhe aprendizagens e memórias extra, pequenas engenharias telepáticas, como eram chamadas no local de onde viera. E também vários outros levantamentos de dinheiro. O inquisidor insistia na sua devoção, no júbilo místico em que o deixavam aquelas manifestações de magnanimidade divina. Para com um pobre pecador como eu, repetia, refastelado no orgulho duma humildade tão perfeita. Quando estava rico e pronto para os ulteriores sucessos o Guia deixou-o, algum tempo. O tempo para que se desenvolvesse a indispensável iniciativa própria.
O inquisidor começou por comprar bens sumptuosos. Um palácio. E terras. Esperava ele os serviços baratos duma mão-de-obra amedrontada. Não será necessário descrever os pormenores das suas surpresas e litígios, por facilmente imagináveis. As terras ficaram abandonadas, no palácio conservou a custo um criado velho, reformado dum restaurante e bastante alcoolizado. Esta sequência de frustrações foi sendo entremeada por outros passos: da dúvida do paraíso à congeminação de uma eventual porta, ou vestíbulo, no qual o candidato às delícias celestes passaria os exames finais; da congeminação à certeza do purgatório. Chegando a esta certeza, a actividade mais ou menos intelectual do inquisidor foi tomada de assalto por uma única emoção, a fúria. Furioso resolveu ele vender o palácio, o recheio e as terras. E os seus pequenos lapsos de adaptação àquele estranho paraíso revelaram-se novamente: o espanto substituiu a fúria quando descobriu que conseguia vender os seus bens pelo triplo do preço porque os comprara. Caiu de novo de joelhos, bateu no peito, agradeceu a Deus: subiu todos os degraus que descera, do purgatório à porta do céu, da porta à definitiva morada. Disse então: Senhor eu reconheço que não desvendei ainda os teus mistérios; não sei o que fazer com as graças abundantes que me concedeste.
Envia-me um sinal, para que este teu servo não caia outra vez em erro nem tentação. Foi então que o Guia do Tempo lhe apareceu novamente, sob uma forma a que poderemos chamar, talvez, Hermes, por simplificação textual. Para isso servem também os nomes. Hermes bateu à porta do inquisidor. Trago-lhe bons conselhos, disse. Eis o sinal que eu esperava, murmurou o inquisidor, o Senhor ouviu-me. Hermes aconselhou a compra de acções de várias empresas. O inquisidor comprou acções que subiram, vendeu, comprou mais, vendeu mais. Hermes, tacticamente sujeito às verdades daquele lugar, disse-lhe então: estamos no cimo, agora as acções vão descer, não compres mais. O inquisidor riu-se. Teceu considerações interessantes sobre o simbolismo intricado contido no facto de se designarem por acções meros pedaços de papel que representavam fatias económicas. Demonstra este facto que Deus consente que os bons se apropriem dos actos dos maus, redimindo esses actos mas também ficando com os eventuais méritos e recompensas, pouco úteis e adequados às más pessoas.
Depois de tão preclara demonstração o inquisidor riu-se, e exclamou: o Senhor tenta a minha confiança. E comprou, comprou. As acções, cuja subida era mero produto de um pequeno grupo de especuladores cuidadosamente accionados por Hermes, caíram a pique. O inquisidor ficou arruinado, e mais não foi preciso para refazer todo o caminho anterior de dúvidas, suspeitas e desgraçadas certezas. Recaído no inferno, achou que Hermes fora o anjo tentador: o demónio. Fui eu sim, que fiz a última compra e desaconselhado por ele, murmurava passeando nas ruas desvairado. Mas a tentação é essa subtil criação do hábito, da necessidade, do vício: sempre obra do demónio. Por isso nunca devemos deixá-lo colocar em nós a primeira sujidade, a semente. Depois é cada vez mais difícil parar. Só no final da escalada vemos o que já antes existia, o pecado. Vemo-lo enfim. Antes estava escondido sob os aparentes bons resultados de nossas acções. Por isso Eva foi enganada. O inquisidor tinha uma secreta obsessão pelas mulheres, comum a todos os inquisidores. Até que a última acção duma série aparentemente inocente nos mergulha na catástrofe. É este o pecado, é esta a morte, foi esta a queda no princípio. E o inquisidor meditou na gulodice e devassidão de Eva, sentiu saudades das suas aguerridas inquisições que procuravam extirpar todo o mal escondido na carne e no sangue dos aparentes inocentes, e não se sentiu consolado». In Maria Isabel Barreno, O Enviado (Contos), Editorial Caminho, Lisboa, 1991, ISBN 972-210-574-4.

Cortesia de ECaminho/JDACT