sexta-feira, 4 de março de 2016

O Número de Deus. José Corral. «O bispo disse-me que te reservará um lugar na escola. Aí aprenderás Matemática, Geometria, Filosofia e Latim. Vou fazer de ti um grande arquitecto»

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O Algarismo e o Número
«(…) A nova arquitectura introduziu o arco ogival de dois centros, de forma pontiaguda, e o arcobotante. Graças a estas duas soluções técnicas, foi possível abrir aqueles grandes vãos e que o empuxo das abóbadas de pedra já não fosse suportado directamente pelos muros, mas sim pelos contrafortes, nos quais os arbotantes descarregavam a pressão, até então sustentada pelas paredes. O novo estilo garantiu o triunfo da luz, ganhou a claridade para o interior das igrejas e possibilitou a construção de naves tão altas como nunca até então se tinha conseguido no ocidente cristão.
Henrique brincava com outros rapazes da sua idade no ribeiro que corria no sopé da colina onde se apinhava o casario de Chartres. Os rapazitos costumavam passar as últimas horas da tarde perto do moinho, aproveitando os momentos prévios ao pôr do Sol, momento em que, com a chegada da noite, corriam para se refugiarem nas suas casas. O jovem Henrique era filho do mestre João Ruão, que havia vários anos dirigia a obra da nova catedral de Chartres. Após o incêndio de 1194 e a destruição da velha catedral estilo românico, o bispo e o cabido de Chartres tinham decidido construir uma nova, no triunfante estilo da luz. Aqueles anos de fins do século XII eram na verdade muito prósperos; havia várias décadas que não se tinha uma má colheita e, Verão após Verão, as rendas das dioceses aumentavam sem parar. Consequentemente, que melhor destino para as riquezas obtidas em beneficio de Deus do que dedicá-las à construção de um templo à sua mãe? Henrique chegou a casa justamente quando o Sol acabava de se ocultar por detrás da linha crepuscular do horizonte. O pai estava a lavar as mãos num pequeno alguidar de barro cinzento enquanto a mãe e uma criada faziam o jantar: talhadas de toucinho guisado acompanhadas com creme de cebola e nabos, pão de nozes, cerveja e queijo. Amanhã vamos começar a colocar as chaves das abóbadas do cruzeiro, comentou o mestre João. A construção da catedral está a ir depressa, disse-lhe a mulher. Sim, muito mais rápido do que tínhamos pensado. As rendas do cabido são em grande quantidade e o bispo está empenhado em rezar a primeira missa quanto antes. Ainda esta manhã me disse que, se precisar de mais operários, os contrate. Mas não são precisamente operários o que faz falta, mas sim artistas. Há tantas obras por todo o lado que se torna difícil encontrar escultores, canteiros e vidraceiros cujo trabalho seja de qualidade. Paris oferece muito dinheiro aos melhores, e Reims e Amiens não lhe ficam atrás. E depois está a Inglaterra, cujos bispos se empenharam em construir nas principais sedes episcopais desse reino catedrais que rivalizem com as de França e até as superem.
O mestre João sentou-se à mesa. Henrique olhou para ele com admiração e esperou que benzesse o jantar. Enquanto o pai o fez, o miúdo pegou na colher de madeira e começou a comer a carne guisada. Amanhã vais comigo à obra. Eu, pai?, estranhou Henrique. Claro que tu. Tens sete anos e já vai estando na altura de começares a trabalhar no ofício. Durante o próximo ano aprenderás os rudimentos que qualquer aprendiz deve conhecer. A maioria dos meus aprendizes começa a trabalhar aos doze ou treze anos, mas tu és filho do mestre e vais fazê-lo muito antes. Dentro de um par de anos irás para a escola da catedral. O bispo disse-me que te reservará um lugar na escola. Aí aprenderás Matemática, Geometria, Filosofia e Latim. Vou fazer de ti um grande arquitecto; espero que não me desiludas. Ainda não tinham acabado de jantar quando bateram à porta. O mestre João indicou à mulher que abrisse a porta; era o irmão dele que acabara de chegar de Paris. Irmão, irmão, consegui, consegui! O exame foi muito duro e difícil, mas aqui está, aqui o tenho. Luís, o irmão mais novo do mestre João Ruão, acabava de conseguir o título de mestre-de-obras num exame efectuado perante um tribunal de mestres em Paris. Logo que recebera o diploma, partira a galope para Chartres para comunicar a boa notícia ao irmão mais velho, sob cujos ensinamentos se tinha formado como arquitecto. Parabéns, irmão, nunca duvidei que o conseguirias, replicou João. Aqui o tenho!, reiterou Luís mostrando orgulhoso o pergaminho em que o tribunal de cinco mestres lhe havia concedido a capacidade para dirigir a construção de edifícios. Olha, sobrinho, olha. Um dia também tu terás um parecido a este. Ainda sobra alguma coisa para jantar, cunhada? Com a pressa, até me esqueci de comer. Claro; vamos, senta-te, vou arranjar-te carne e queijo. E cerveja; há que celebrar. É melhor que seja vinho, disse João. Como foi o exame?» In José Luís Corral, El Número de Deus, 2004, O Número de Deus, O Segredo das Catedrais Góticas, tradução de Carlos Romão, Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.

Cortesia de Planeta Editora/JDACT