«Distinto leitor, ouve Poliphilo contar os
seus sonhos, sonhos enviados pelos mais altos céus. Não perderás o teu tempo,
nem ao ouvir te aborrecerás, porque este trabalho maravilhoso é em coisas
fértil. Se, austero e severo, desprezas histórias de amor, acredita, peço-te, que
aqui as coisas respeitam a sua ordem. Recusas? Mas ao menos o estilo, com a sua
linguagem romanceada, discurso austero e sabedoria, é digno de atenção. Se
também isto recusares, atende à geometria, às muitas coisas antigas aqui
desenhadas em símbolos nilóticos... Aqui verás os palácios perfeitos que
pertenceram a reis, a veneração de ninfas, fontes e ricos banquetes. Os guardas
dançam, em trajos de variegadas cores, e o todo da vida humana exprime-se em
labirintos sombrios».
In
Elegia Anónima ao Leitor, Hypnerotomachia Poliphili
«O
meu pai, suponho que como muitos de nós, passou a maior parte da vida a juntar
as peças de uma história que nunca iria compreender. Essa história começou
quase cinco séculos antes de eu ter entrado para a faculdade e veio a terminar
muito depois da morte do meu pai. Numa noite de Novembro de 1497, dois
mensageiros cavalgavam, deixando para trás as sombras do Vaticano para se
dirigirem a uma igreja chamada San Lorenzo, fora das muralhas de Roma. O que
aconteceu nessa noite mudou os seus destinos e o meu pai acreditava que podia
também mudar o seu. Eu nunca dei muita importância a essas convicções. Um filho
é a promessa que o tempo faz a um homem, a garantia que cada pai recebe de que
seja o que for a que ele tenha especial apego será um dia considerado uma
loucura e que a pessoa que ele mais ama no mundo nunca o irá compreender. Mas o
meu pai, um humanista do Renascimento, nunca pôs em causa a possibilidade de
renascer. Ele contou tantas vezes a história dos dois mensageiros que, mesmo que
eu quisesse, nunca a poderia esquecer. Compreendo agora que ele sentia que ela
continha uma lição, uma verdade que haveria finalmente de estabelecer uma
ligação entre nós. Os mensageiros tinham sido enviados a San Lorenzo para
entregar a carta de um nobre, carta essa que não deveriam abrir, sob pena de
isso lhes custar a vida. A carta fora selada quatro vezes com lacre preto e
parecia conter um segredo que mais tarde o meu pai iria passar três décadas a
tentar descobrir. Mas nesses tempos as trevas tinham-se abatido sobre Roma; o
sentido da honra tinha-a abandonado e não regressara. No tecto da Capela
Sistina estava ainda pintado um céu estrelado e as chuvas apocalípticas tinham
feito transbordar o rio Tibre, em cujas margens aparecera, pelo menos assim afirmavam
as velhas viúvas, um monstro com corpo de mulher e cabeça de burro. Os dois
cavaleiros ambiciosos, Rodrigo e Donato, não haviam dado atenção aos avisos do
seu senhor. Derreteram os selos de lacre com uma vela e abriram a carta para
conhecerem o seu conteúdo. Antes de partirem para San Lorenzo, voltaram a selar
a carta com toda a perfeição, reproduzindo o selo do nobre com tanto rigor que
era impossível descobrir a falsificação. Se o seu senhor não fosse um homem tão
avisado, os dois correios teriam certamente sobrevivido. Porque não eram os
selos que iriam deitar a perder Rodrigo e Donato. Era o lacre forte e negro em
que tinham sido gravados. Quando chegaram a San Lorenzo, veio ao encontro dos
mensageiros um artesão que sabia o que o lacre continha: um extracto de uma
erva venenosa chamada erva-moira, que, quando aplicado nos olhos, dilata
as pupilas. Actualmente o composto é usado em medicina, mas nesses tempos era
utilizado pelas mulheres italianas como cosmético porque as pupilas grandes
eram consideradas sinal de beleza. Foi essa prática que deu à planta o outro
nome por que é conhecida: «mulher bela», ou beladona. Quando Rodrigo e Donato
desfizeram e voltaram a fazer os selos, ficaram expostos ao efeito do fumo do
lacre derretido. Quando chegaram a San Lorenzo, o artesão levou-os até ao pé de
um candelabro, junto do altar. Quando viu que as suas pupilas não se contraíam,
soube o que é que eles tinham feito. E, apesar de os dois homens se esforçarem
por reconhecer o artesão através da sua visão desfocada, este fez o que lhe
tinha sido ordenado: pegou na espada e decapitou-os. Era um teste de confiança,
dissera o senhor, e os mensageiros tinham reprovado.
O
que acontecera a Rodrigo e Donato, soube-o o meu pai pela leitura de um
documento que descobriu pouco tempo antes de morrer. O artesão cobriu os corpos
dos homens e arrastou-os para fora da igreja, enxugando o sangue com panos e
farrapos. Colocou as cabeças em dois alforges, um de cada lado da sua montada;
quanto aos corpos, atravessou-os em cima dos próprios cavalos de Donato e
Rodrigo, que atrelou ao seu. Encontrou a carta no bolso de Donato e queimou-a
porque se tratava de um documento forjado e não existia na verdade qualquer
destinatário. Depois, antes de partir, ajoelhou-se em penitência em frente da
igreja, horrorizado pelo crime que cometera em nome do seu senhor. Aos seus
olhos, as seis colunas de San Lorenzo, separadas pelas aberturas entre elas,
surgiam como dentes negros e aquele simples artesão admitiu que tremia perante
esta visão porque, em criança, sentado no colo das viúvas, tinha ouvido contar
que Dante vira o inferno e que o castigo dos maiores pecadores era ser
triturado para a eternidade nas mandíbulas de lo ’mperador del doloroso
regno. Talvez o velho São Lourenço tivesse finalmente olhado do seu túmulo
e, ao ver as mãos do pobre homem cobertas de sangue, lhe tivesse perdoado. Ou
talvez não houvesse perdão possível e, tal como os santos e mártires dos nossos
dias, Lourenço mantivesse um silêncio impenetrável. Mais tarde, na noite desse
mesmo dia, o artesão, seguindo as ordens do seu senhor, levou os corpos de
Rodrigo e Donato a um carniceiro. Provavelmente será melhor nem tentar
adivinhar qual foi o destino que tiveram… Contudo, para as cabeças dos dois
homens, o carniceiro reservava outro destino. Um padeiro da cidade, homem
dominado pelo demónio, comprou-as e nessa noite, antes de fechar a loja,
meteu-as no forno. Era hábito nesses tempos as viúvas utilizarem os fornos dos
padeiros, depois de escurecer, enquanto as cinzas se mantinham ainda quentes do
dia; e foi assim que as mulheres, quando chegaram, fizeram uma enorme gritaria
e quase desmaiaram perante o que encontraram». In Ian Caldwell e Dustin Thomason,
A Regra de Quatro, Hypnerotomachia
Poliphili, Grandes Narrativas, Editorial Presença, 2004, ISBN
978-972-233-263-5.
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