A
História de Caravaggio. Roma. Jardim do Mal. 1605
«(…)
Ele é o artista mais famoso de Roma. No final da nave, Scipione Borghese persignou-se.
Sua mão correu pelas roupas escarlates lenta e voluptuosamente, como se estivesse
acariciando o peito de uma amante. Acha que pode conservá-lo com você? Não agora que o seu tio foi consagrado papa,
pensou o cardeal del Monte. A indicação do novo pontífice
transformou Scipione no príncipe mais poderoso da Igreja de Roma. Ele vai forçar o meu protegido a assinar as suas
cartas como vossa humilde criatura. Se acha que é possível
controlar Caravaggio, meu bom senhor, ficarei feliz em apresentá-lo para que o
senhor possa tentar ficar com ele. Ele obedece a um poder maior que o seu ou o
meu, disse ele, fazendo um gesto em direcção ao crucifixo de ouro que reluzia
no altar à luz que penetrava pelas altas janelas. E não estou referindo-me ao Santo
Padre, que Deus o abençoe. Scipione inclinou o pulso, com o indicador e o
mínimo estendidos, como se fossem os chifres do Demónio. Del Monte fez uma
careta ao ver um gesto tão profano feito pela mão cuidadosamente tratada do
novo árbitro das artes e do poder na cidade dos papas. Pelo que ouvi falar de
seu comportamento, a autoridade de Caravaggio não provém de cima, mas lá de
baixo, disse Scipione. Os artistas são tipos difíceis. Eu sei como dobrá-los à
minha vontade. Com os duzentos ducados
anuais que o trono de São Pedro lhe concedeu, sei que vai achar um meio de
fazer isso. Del Monte guiou Scipione até à capela da nave esquerda.
Aqui estão eles. Scipione empurrou o barrete escarlate para a parte posterior
da cabeça, coçou o queixo e ficou puxando, de maneira ruminante, a ponta do cavanhaque. Depois, passou a língua pelo
lábio superior. Ele era jovem e delicado, mas alguma coisa no seu rosto deixava
fácil prever como ficaria quando engordasse. E este, com certeza, vai engordar, pensou del Monte. O corpo mal contém a avareza do homem.
Deem-lhe apenas alguns anos de poder absoluto e verbas ilimitadas, para que a sua
barriga se amplie e o seu queixo se multiplique. O famoso orgulho
da Igreja de São Luís dos Franceses, disse Scipione. Os dois cardeais passaram
pela balaustrada de mármore verde, entrando na capela dos Contarelli. O anjo
e São Mateus e O martírio de São Mateus, sem dúvida duas obras maravilhosas.
Sim, mas esta é a tal. Esta é a obra, disse Scipione, voltando-se para a
enorme tela sobre a parede à esquerda do altar. A vocação de São Mateus,
disse del Monte, abrindo as mãos num movimento largo. Admito que até eu, que
reconheci seu talento antes de todos os outros patronos, nunca esperei que um
génio de tamanha virtuosidade se manifestasse nele. É revolucionária. Em toda
essa escuridão, Scipione afastou os pés e pousou as mãos no ventre. Ele
movimentava a mandíbula e mexia as bochechas como se estivesse devorando a tela
diante dele. A vocação mostrava cinco homens ao redor de uma mesa. Três
jovens usavam vistosos gibões e chapéus emplumados. Os outros tinham os cabelos
grisalhos. Um cómodo vazio, com paredes de cor parda. Uma janela suja e que não
permitia a passagem da luz. Mas, da direita, onde um sol vívido iluminava a
própria capela, via-se um fluxo de quentes tons de amarelo e castanho, como se
penetrasse por uma janela alta e iluminasse um porão. Abaixo desse suave fluxo de
luz, obscurecido pela sombra, com a mão estendendo-se para convocar o seu
futuro discípulo, via-se o rosto barbado de Jesus. Que ideia brilhante, disse
Scipione, a de deslocar Nosso Senhor da sua tradicional posição no centro
brilhante da composição. E, contudo, ele domina a cena. É isso mesmo, del
Monte. O significado da obra não nos é imposto por céus brilhantes e anjos
radiosos. Precisamos procurá-lo. Como o próprio São Mateus. Procurá-lo dentro
de nós, acrescentou Scipione, apontando para uma das figuras sentadas, que
parecia apontar para si mesma, perguntando-se se não era ele o convocado por
Cristo. Quando essas obras foram entregues para a São Luís cinco anos atrás,
disse del Monte, eu sabia que transformariam a pintura para sempre. Agora, em
qualquer igreja de Roma pode-se ver que cada nova obra de arte ou é uma cópia
do estilo de Caravaggio por um de seus admiradores ou uma furiosa rejeição dele
por alguém que deseja prender-se ao estilo da última metade do século.
Caravaggio hoje está presente em todas as obras, quer os pintores o admitam ou
o refutem». In Matt Rees, Caravaggio, tradução de Valter Siqueira, 2012, Novo
Século Editora, 2014, ISBN 978-854-280-209-2.
Cortesia
NSéculoE/JDACT