Cortesia de wikipedia e jdact
A plenitude da existência
«(…) Depois fantasiei-a diante de um toucador,
arranjando os cabelos com uma coifa, desejando parecer mais bonita, como se
fosse possível. Mas logo entrou a tia Alice; cumprimentou-me com o mesmo ar
crítico de sempre, retirou a partitura da estante, apagou as velas e fechou a
tampa do piano, desaparecendo em seguida. Era ela, e não Esther, quem tinha
estado a tocar aquele instrumento. Augusto deu-me diversas notícias familiares.
Ele estava a par de tudo o que se passava na Paraíba, agitação política,
movimento armado no sertão, terras invadidas, armazéns saqueados pelas hordas
famintas, cangaceirismo por todos os lados, as brigas de Joque, que ainda era
presidente da província, pois de poucos em poucos dias recebia cartas de dona
Mocinha. Quando demorava a chegar uma carta de sua mãe, Augusto tornava-se
inquieto, fumava cigarrilhas de cânfora ou de eucalipto para evitar um ataque
de asma, tomava banho de água muito fria, falava a cada instante na falta de
notícias, temeroso de significar alguma doença, ou mesmo a morte, da sua
adorada mãe. Artur, Nini e Pupu estiveram no Rio de Janeiro, gozando todos os desportos
da cidade. Marica Cirne está passando bem. Donata fez sessenta anos e continua
maternal, virgem, dona de todas as verdades fundamentais da natureza. Generino
escreveu um soneto para Esther. Veio aqui esta semana, mesmo, está sempre connosco,
assaz interessado nos meus negócios particulares. Há por dentro daquela casca
de esquisitices puramente tegumentar uma enorme bondade desconhecida que o
agiganta de modo extraordinário, à luz de rigoroso critério julgador. Alexandre
está perto de se formar, Odilon assistirá às festas. Não vai perguntar pelo tio
Acácio? E... Marion Cirne? Decerto não quer falar neste assunto, mas tenho que
dizer, até hoje ela não se casou. E nem se vai casar. És mesmo um estouvado.
Aprígio está constipado. A boa Iaiá, sempre revigorando as energias plásmicas
da saúde. Irene Fialho e Olga possuem ainda aquele magnetismo. Dona Miquilina
continua sendo a companheira inseparável das filhas. Rómulo está no interior de
Minas. Faleceu o doutor Pacheco, o pai de Rómulo, lembra-se dele? Sim, me
lembrava de todas aquelas personagens, embora os nomes recriassem pessoas
distantes, imateriais, como se estivessem todas mortas, às quais eu podia ver apenas
através de uma espessa neblina. Para Augusto, ao contrário, era como se
estivessem ao seu lado, em carne e osso, respirando e falando. Ele vivia
voltado para seu passado. Conversamos sobre o tempo em que éramos crianças e
passávamos férias juntos, no Pau d'Arco. Ele lembrou-se do concriz de seu pai,
que vivia numa das gaiolas da cozinha e do qual sabíamos imitar com perfeição o
canto, que por sua vez era uma imitação do canto de um sabiá que ficava perto.
Lembrou-se do perfume das rosas que cresciam pelas paredes de tijolos da
casa-grande, dos vidros violeta das janelas, das telhas tão velhas que pareciam
plantações de fungos. Falou, como sempre, da história da moeda de ouro roubada
por sua ama-de-leite, que ainda o oprimia e o fazia ter pesadelos. Dos banhos.
Do comboio. Dos morcegos. Do tamarindo. Do Mi-santropo. Em seguida mostrou-me
uma folha de canela onde estava a escrever com a ponta de um alfinete a palavra
Saudade, que iria mandar para sua mãe; pus a folha diante de meus olhos, contra
a luz, elogiei o trabalho minucioso de Augusto, mas eu estava suspenso,
esperava algo acontecer, era como se eu ainda não tivesse chegado naquele sobrado.
Durante o nosso encontro às vezes Augusto se entregava a olhar a paisagem pela
janela e, quando ouvia o apito de um navio prestes a deixar o cais, ficava em
silêncio, absorto, dando a impressão de estar partindo junto com o vapor.
Talvez se estivesse a lembrar do melancólico apito do bueiro no Engenho do Pau
dArco. Tudo o transportava ao seu passado junto dos pais e irmãos. Sei que a minha
visita lhe era preciosa por este motivo; eu lhe levava recordações das águas
negras do Una, dos ares cosmopolitas de Cabedelo. Foi num desses momentos de
abstracção e silêncio que a porta da parte íntima da casa se abriu e, com o
coração disparado, eu a vi surgir. Envolta num xale de barbante, pálida, magra,
Esther entrou na sala para me cumprimentar e servir uma xícara de café. Havia
algo diferente nela, uma sombra parecida com a que cercava Augusto; ela não era
mais a moça colorida, leve, alegre de antes, a moça que sorria e cultivava
flores nas janelas e nos jardins. Pôs a bandeja sobre uma mesinha entre mim e
Augusto, esboçou um sorriso, cruzou os braços aquecendo-se com o xale e ficou
ali, imóvel, distante daquela sala escura que ela devia detestar. Naquele
momento vi sob os seus olhos as olheiras fundas; as suas mãos estavam
enrijecidas. Augusto tratou de servir, ele mesmo, o café nas xícaras, mas
percebeu que faltava o açúcar e pediu que Esther o fosse buscar na cozinha.
Quando ela voltou, com o açucareiro, ele a tocou ternamente na mão, o que a fez
ruborizar e lançar um breve olhar sobre mim. Vá deitar-se, não se canse, disse
ele. Esther retirou-se em seguida, quase como um autómato. Pobre de minha
esposa, disse Augusto. Errou ao casar-se comigo. Perguntei-lhe porque dizia
isso». In Ana Miranda, A Última Quimera, Companhia das Letras, 1995, ISBN
857-164-454-3.
Cortesia de CdasLetras/JDACT