«A
história baseia-se num facto real, um serviço de visitadoras organizado pelo
Exército peruano para desafogar as ânsias sexuais das guarnições amazónicas,
que conheci de perto em duas viagens à Amazónia, em 1958 e 1962, magnificado e
distorcido até se transformar numa farsa truculenta. Por incrível que pareça,
pervertido como eu estava pela teoria do compromisso na sua versão sartriana,
tentei, a princípio, contar esta história a sério. Descobri que era impossível,
que ela exigia a paródia e a gargalhada. Foi uma experiência libertadora, que
me revelou, só então!, as possibilidades da brincadeira e do humor na
literatura. Ao contrário dos meus livros anteriores, que me fizeram transpirar,
escrevi este romance com facilidade, divertindo-me muito e lendo os capítulos,
à medida que os terminava. Alguns anos depois de publicado o livro, com um
sucesso de público que não tive antes nem voltei a ter, recebi um misterioso
telefonema, em Lima: sou o capitão Pantaleão Pantoja, disse a enérgica voz. Gostaria
de vê-lo para que me explique como soube de minha história. Recusei, fiel à
minha crença de que os personagens da ficção não devem se intrometer na vida real».
In
Londres, 29 de Junho de 1999
«Acorde,
Panta, diz Pochita. Já são oito horas. Panta, Pantita. Já, oito horas? Puxa,
que sono, boceja Pantita. Costurou o meu galão? Sim, meu tenente, se perfila
Pochita. Ai, desculpe, capitão. Até eu me acostumar você vai continuar sendo
tenentinho, meu amor. Sim, costurei, ficou ótimo. Mas levante-se de uma vez,
sua reunião não é às...? Às nove, sim, Pantita se ensaboa. Aonde vão nos
mandar, Pocha? Passe a toalha, por favor. Para onde você acha,chola? Aqui,
em Lima, contempla o céu cinzento, as varandas, os automóveis, os pedestres
Pochita. Ai, fico com água na boca: Lima, Lima, Lima. Não sonhe, Lima nunca,
que esperança, se olha no espelho, amarra a gravata Panta. Se fosse pelo menos
uma cidade como Trujillo ou Tacna, eu ficaria feliz. Que engraçada esta notícia
no El Comercio, franze o rosto Pochita. Em Leticia um sujeito se
crucificou para anunciar o fim do mundo. Foi mandado para o manicómio mas as
pessoas o tiraram à força porque acham que ele é santo. Leticia é a parte
colombiana da selva, não é? Que boa-pinta você está como capitão, filhinho, põe
a geleia, o pão e o leite na mesa a senhora Leonor. Agora é da Colômbia, mas
antes era do Peru, tiraram de nós, passa manteiga numa torrada Panta. Um
pouquinho mais de café, mamãe. Se nos mandassem de novo para Chiclayo, junta as
migalhas num prato, tira a toalha a senhora Leonor. Afinal, lá estávamos muito
bem, não é mesmo? Para mim, o principal é que não nos mandem para muito longe
da costa. Vá, filhinho, boa sorte, com a minha bênção. Em nome do Pai e do
Espírito Santo e do Filho que morreu na cruz , ergue os olhos para a
noite, abaixa os olhos até as tochas o Irmão Francisco. Minhas mãos estão
amarradas, a madeira é oferenda, façam por mim o sinal da cruz! O coronel López
López está à minha espera, senhorita, diz o capitão Pantaleão Pantoja. E dois
generais também, abre os olhinhos a senhorita. Pode entrar, capitão. Sim, essa
aí, a porta marrom. Aqui está o homem, se levanta o coronel López López. Entre,
Pantoja, parabéns por esse novo galão. A melhor nota no exame de promoção, e
por unanimidade do júri, aperta sua mão, dá um tapinha no ombro o general
Victoria. Muito bem, capitão, assim é que se faz carreira para o bem da Pátria.
Sente-se, Pantoja, aponta para um sofá o general Collazos. Fique à vontade e
segure-se bem para ouvir o que vai ouvir. Não o apavore, Tigre, move as mãos o
general Victoria. Assim ele vai pensar que o estamos mandando para o matadouro.
Os chefões da Intendência vieram pessoalmente lhe comunicar o seu novo destino,
isto significa que a coisa não é tão simples, faz uma expressão grave o coronel
López López. Sim, Pantoja, trata-se de um assunto bastante delicado. A presença
destes chefes é uma honra para mim, bate o calcanhar no chão o capitão Pantoja.
Caramba, o senhor me deixa intrigado, coronel. Quer fumar?, tira uma
cigarreira, um isqueiro o Tigre Collazos. Mas não fique aí em pé, sente-se.
Como, não fuma? Está vendo, desta vez o Serviço de Inteligência acertou,
acaricia uma fotocópia o coronel López López. Isso mesmo: nem fumante, nem
pau-d’água nem olho-grande. Um oficial sem vícios, se admira o general
Victoria. Já temos alguém para representar as armas no Paraíso, junto com Santa
Rosa e São Martín de Porres. Não exagerem, enrubesce o capitão Pantoja. Devo
ter alguns defeitos desconhecidos. Sabemos do senhor mais que o senhor mesmo,
apanha uma pasta e torna a largar na mesa o Tigre Collazos. Ficaria pasmo se soubesse
quantas horas passamos estudando a sua vida. Sabemos o que fez, o que não fez e
até o que vai fazer, capitão. Podemos recitar sua folha de serviço de cor, abre
a pasta, embaralha fichas e formulários o general Victoria. Nem uma punição
como oficial, e como cadete só meia dúzia de advertências leves. Por isso foi
escolhido, Pantoja. Entre quase oitenta oficiais da Intendência, nada mais,
nada menos, levanta uma sobrancelha o coronel López López. Pode ficar inchado
feito um pavão. Agradeço o bom conceito que têm de mim, se embaça a vista do
capitão Pantoja. Farei tudo o que puder para corresponder a essa confiança,
coronel. O capitão Pantaleão Pantoja?, sacode o telefone o general Scavino. Não
estou ouvindo direito. Para que o mandou, Tigre? O senhor deixou uma magnífica
lembrança em Chiclayo, folheia um relatório o general Victoria. O coronel
Montes estava doido para que ficasse lá. Parece que o quartel funcionava como
um relógio graças ao senhor. Organizador nato, senso matemático da ordem,
capacidade executiva, lê o Tigre Collazos. Conduziu a administração do
regimento com eficácia e verdadeira inspiração. Nossa, o mestiço Montes se
apaixonou pelo senhor. Tantos elogios me deixam confuso, abaixa a cabeça o
capitão Pantoja. Só procurei cumprir o meu dever, apenas isso. O Serviço das...
quê?, solta uma gargalhada o general Scavino. Nem você nem o Victoria vão
conseguir me deixar de cabelo em pé, Tigre, esqueceram que sou calvo? Bem,
vamos aos factos, sela os lábios com um dedo o general Victoria. Este assunto
exige a mais absoluta reserva. Falo da missão que vamos lhe confiar, capitão.
Solte os bichos, Tigre. Em poucas palavras, a tropa da selva está comendo as cholas,
toma fôlego, pisca, tosse o Tigre Collazos. Há estupros a granel e os tribunais
já nem conseguem julgar tanto safado. Toda a Amazónia está em alvoroço. Diariamente
nos bombardeiam com informes e denúncias, belisca o queixo o general Victoria. Chegam
comissões de protesto dos povoados mais perdidos. Seus soldados abusam das
nossas mulheres, espreme o chapéu e perde a voz o prefeito Paiva Runhuí. Fizeram
mal a uma cunhadinha minha há poucos meses, e na semana passada quase abusaram
da minha própria esposa». In Mario Vargas Llosa, Pantaleão e as
Visitadoras, 1974, Editora Objectiva, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, Alfaguara,
Prisa Edições, ePub, 2012, ISBN 978-857-962-175-8.
Cortesia
de Alfaguara/JDACT