domingo, 6 de março de 2016

A Última Tribo. Eliette Abécassis. «Sim, perfeito. Preciso de te falar a sós. Trata-se de trabalho. Mas, Shimon, sabes perfeitamente que isso está completamente fora de questão...»

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«O homem foi encontrado no santuário, sobre o vale. Chegava-se ao edifício passando por uma longa fileira de árvores. Ao seu lado, um areal enfeitado com alguns arbustos e ervas sem flores circundava a construção. Uma corrente serpenteava por entre as árvores para desaguar num riacho, numa fina cascata sobre as rochas cavas. As nuvens tinham-se acumulado depois do relâmpago que rasgara o céu. Escureciam, envolvendo com uma aura sombria as estrelas que anunciavam a noite. Fazia-se tarde no jardim com as suas árvores e as suas estreitas correntes de água à volta do templo, fazia-se tarde no vale de onde o fumo se elevava em volutas, fazia-se tarde em toda a terra. No entanto, a luz fraca do crepúsculo, era possível distinguir o homem na sala vazia. jazia estendido no solo, sem vida, braços dispostos em cruz, cabeça inclinada para o ombro, corpo coberto por um andrajo. Os seus cabelos sem cor esfiapavam-se como filamentos, e a pele, tão fina que parecia desaparecer, era furada pelos ossos. O rosto, inexpressivo, apresentava o trejeito característico da caveira. O vigor abandonara este corpo consumido pelo tempo, os rins tinham perdido força, a carne derretia como cera, o braço desprendera-se do ombro, os joelhos pareciam liquidificados. Os seus ossos deslocavam-se e as entranhas assemelhavam-se a um navio na fúria de uma tempestade. Diante dele, estava um fragmento de manuscrito coberto por uma escrita negra e cerrada, que ele parecia ter segurado na mão, há muito, muito tempo... Esta é a tua visão e tudo o que ela contém está prestes a advir no mundo... No meio de grandes sinais, a tribulação abater-se-á sobre esta terra. E depois de todas essas matanças e massacres, elevar-se-á um Príncipe das Nações».

O rolo de Ary
«Para vós, experimentarei então o meu sopro: dispensarei as minhas palavras, por meio de parábolas e enigmas, a todos os perscrutadores das raízes do discernimento e também aos seguidores dos mistérios do maravilhoso, aos caminhantes, aos cândidos e àqueles cujos actos não passam de intrigas sobre os tumultos das nações, para que possam discernir entre o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, para que apreendam os mistérios do pecado. Eles ignoram os segredos, nunca questionaram as crónicas, não sabem o que os espera. Não salvaram a sua alma, privados que estavam do segredo da existência». In Manuscritos do Mar Morto, O Livro dos Segredos.

«Era uma manhã de Primavera. O Sol levantava-se sobre Jerusalém, acariciava os telhados com o seu olhar castanho--avermelhado, esse olhar que só tem para ela. Os seus raios filtravam-se através da janela do meu hotel, envolvendo o quarto num halo amarelado. Alguém batia insistentemente a porta. Levantei-me, vesti-me rapidamente e fui abrir. Foi então que vi aquele cuja presença temera, o portador de notícias que sempre receava e cujas palavras tinham abalado tantas vezes os alicerces da minha vida. Ali estava ele, sempre igual a si mesmo, em todo o seu poder, na plenitude do seu ser. Incontornável. Modos descontraídos, cinquenta anos bem conservados, tez mate, cabelos escuros com fios de prata, vestido à militar, com um casaco e umas calças de grosso tecido bege. Shimon Delam, proferi, como que para mantê-lo à distância, ex-comandante do exército, actual chefe do Shin Beth, os serviços de informação interna de Israel... Não, Ary, acabo de ser nomeado para um novo posto, respondeu, esboçando um sorriso. Agora estou no Mossad. Parabéns. Muito me regozijo... Mas..., foi para me dares essa notícia que vieste aqui a esta hora tão matinal? Matinal..., ecoou Shimon, entrando e instalando-se confortavelmente numa das poltronas. Assinalo-te que, mesmo assim, já são sete horas. Deixei a porta escancarada. Ora, Shimon... Podemos ver-nos um pouco mais tarde, ou melhor..., nunca mais! Não queria incomodar-te, Ary, mas é um caso urgente, interrompeu-me, com ar falsamente desolado. Um caso urgente. Claro, é sempre um caso urgente...
Urgente talvez não seja a palavra adequada. Diria antes premente. Bem, bem…, qual é a diferença?, perguntei, continuando de pé, pois estava habituado às subtilezas de Shimon. O meu interlocutor pareceu satisfeito. Já não era sem tempo. Perfeito. Agora podes sentar-te. Obedeci automaticamente. Perfeito? Shimon tinha um dom único para se sentir em sua casa a qualquer hora e a qualquer momento e, também, para o dar a entender aos outros. Sim, perfeito. Preciso de te falar a sós. Trata-se de trabalho. Mas, Shimon, sabes perfeitamente que isso está completamente fora de questão... Fez um gesto para me indicar que não queria dizer mais. Franziu a sua testa burilada pelo sol, sinal de grande inquietação. Passou-me uma fotografia. Olhei para ela, sem compreender. Um homem jazia no solo, braços em cruz, aparentemente morto há bastante tempo: o seu corpo deixava os ossos à vista sob um pedaço da túnica clara, mal se lhe distinguiam os traços do rosto. Encontrava-se num local que se assemelhava vagamente a uma sinagoga antiga, ou melhor, a um templo». In Eliette Abécassis, A Última Tribo, 2004, tradução de Carlos Oliveira, Editora Livros do Brasil, Colecção Suores Frios, Lisboa, 2005, ISBN 972-382-763-8.

Cortesia ELBrasil/JDACT