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A Sereníssima Infanta Dona Maria. A sua casa e fortuna
«(…) É muito provável que o palácio do Campo de Santa Clara
tenha uma construção muito tardia, certamente da década de 60, correspondendo
ao pedido de desanexação de uma parte da freguesia de Santo Estevão de Alfama.
O programa arquitectónico que a Infanta lidera junto do mosteiro das Clarissas,
construindo um palácio ao lado do secular mosteiro e uma igreja paroquial,
projecta um ambicioso propósito político, que tem correspondência no
desenvolvimento urbanístico que proporciona. O palácio de Santos-o-Novo fará,
talvez, parte deste desenvolvimento, estabelecendo uma ancestral continuidade
entre as três mais significativas casas religiosas a oriente da cidade de
Lisboa: os mosteiros das Clarissas do Campo de Santa Clara e de Xabregas e o convento
agostinho, que herdara a memória e simbólica do ancestral templo de vestais de
Lisboa. Em Santa Clara, a Infanta afirmava o seu poder precursor e, ao
mesmo tempo, o distanciamento da política da Ribeira; em Xabregas (não podemos
esquecer que no testamento dona Maria pediu para que o seu corpo fosse
depositado aqui, enquanto aguardava a conclusão da capela-mausoléu da Luz),
tinha a presença da venerada e tutelar imagem da tia Leonor; e em
Santos-o-Novo, sob a influência directa de Chelas e da mitológica fundação da
cidade por Ulisses, que ao ver-se perseguido pelo desfavor dos deuses procura
abrigo num templo de vestais, que a historiografia cristã apropria
virtuosamente (a reedificação e melhorias seiscentistas do convento é feita
sobre o patrocínio, talvez não inocente, do arcebispo Miguel Castro,
responsável pela gestão da fortuna da Infanta e pelo busto-relicário de Santa
Engrácia),dona Maria reforçava a imagem do seu virginal sacrifício pela
continuidade dinástica e política dos Avis.
Tão vasta fortuna e palácios proporcionavam à Infanta uma
casa rica na qual tinham lugar alguns dos membros das melhores famílias do
Portugal de Quinhentos. Em 1567, o cronista oficial da corte dava notícia deste
facto: traz tam honrrada casa de criados,
damas, e outros familiares, que pera se dizer que he igual a todalas Rainhas
Deuropa, lhe nam falta mais que o nome de huma dellas. A lista dos moradores da casa da Infanta não
se encontra completa. A documentação disponível tem inúmeras lacunas e acaba, misteriosamente,
no início dos anos 40. Nela constam alguns nomes que fazem parte da galeria de
personagens célebres do século XVI: Paula Vicente e o seu irmão João, as filhas
de Joana de Blasfer e de Francisco Gusmão, Constança, Maria e Luísa (Constança
Gusmão e Maria Gusmão ou, segundo alguns autores, de Blasfet, aparecem nos róis
de moradias de dona Maria, ainda que a moradia da primeira venha, normalmente,
sob o nome da irmã, repetido, tratando-se de um óbvio engano; o nome de Luísa
não aparece, talvez, por ser a mais nova das três e ter entrada ao serviço da
Infanta em data posterior a 1543, pois não nos parece que Luísa Gusmão
estivesse ao serviço de qualquer outra senhora. Luísa Gusmão casou com o 2.º
conde de Vimioso, Afonso Portugal, que acompanha a Infanta à raia alentejana no
ano de 1558 quando vai ao encontro da mãe e recebe, por isso, particulares
mercês, e após a morte do rei-cardeal Henrique, são ambos leais apoiantes, a
ponto de Filipe I nunca os ter perdoado, da subida ao trono de António, Prior
do Crato, 18º rei de Portugal, sobrinho dilecto da Infanta. Constança será a
mais velha das três, uma vez que se torna camareira-mor da Infanta à morte da mãe,
Joana Blasfet; casou com Pedro Menezes, que morreu em 1553, em Ceuta, onde era
capitão; deste casamento nasceu António Menezes que mais tarde casou com dona
Joana Lencastre, filha de Jerónimo Castro, e cujo filho Pedro vem mencionado em
vários róis de tenças; maria casou com Francisco Coutinho, 3.º conde do
Redondo, e teve três filhas: a célebre Guiomar Blasfet, a quem Camões dedicou
inúmeros versos apaixonados, que casou com Simão Menezes, senhor do Louriçal;
Joana Gusmão, que casou com o l.º conde de Vila Franca, Rui Gonçalves Câmara;
e, por fim, Isabel Henriques, que casou com Afonso Lençastre), ou ainda o
ourives real Baltasar Cornejo (consta num rol datado de 1529, quando a Infanta
contava 8 anos, tratando-se, portanto, de um pagamento extraordinário por
qualquer serviço executado por intervenção da rainha e não de um criado da sua casa).
Contudo, os róis são omissos em nomes como os das irmãs Sigeia, Luísa e Ângela,
Hortênsia Castro ou Francisco Gusmão, cuja certeza enquanto membros da casa da
Infanta se confirma pela documentação oficial (é a própria Luísa que anos mais
tarde afirmava ter sido alumna, ou
seja, alimentada, beneficiada da Infanta; Hortênsia consta no rol de tenças a
serem atribuídas à morte da Infanta, como dama da câmara; lembramos que Carlos
V recorre a Francisco Gusmão para obter informações da Infanta mais de uma vez;
a documentação do rei João III também o atesta, num alvará de 1554, o rei
concede a Luís Gusmão, filho de Joana Blasfet e Francisco Gusmão, uma tença de 50
mil réis pelos serviços dos pais à infanta dona Maria)». In Carla Alferes
Pinto, A Infanta Dona Maria de Portugal, o Mecenato de uma Princesa
Renascentista, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-9440-90-5.
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