Cortesia
de wikipedia e jdact
Um
jornalista levado dos diabos
«Vi
que a vida era má e escrevi estas cartas. Se as leres no meio de um festim, as
porás de parte com enfado, mas buscarás a sua consolação quando o mundo te
fizer chorar».
Carta
I
«(…)
A geração é de covardes e cada ano que passa está mais corrupto o mundo.
Ah, não ter eu muito que dar a este pequeno miserável que me bate agora à
porta, para que ele me chame o mais vil que o sol cobre, o mais canalha de
todos, o mais indigno, o mais bandido! Ele não se engana. Lá tem o seu
raciocínio que não falha nunca. Dei-lhe tudo o que tinha e todavia vai a
resmungar baixinho que um dia, um dia que virá cedo, me virá bater à porta com
uma coronha e me há de fuzilar a mim, o maior dos patifes que o socorri. Vai-se
embora a pensar que se fosse rico, havia de azorragar toda essa ralé que pede esmola
e toda aquela que dá tudo o que tem. E cisma em ser um dia o maior dos Neros
que o mundo tem visto; em ter um chicote com que possa de uma só vez azorragar
a Terra, ele, cujo corpo deveria ser balançado no candeeiro ali defronte. De trinta
mendigos a quem dei esmola hão de nascer noventa patifes para me apedrejar. Abençoada
esmola! Mas explica-se. É que a minha esmola, esmola humana, fecunda lá dentro
todo o meu cinismo e toda a minha canalhice. Deste-me esmola? Muito bem,
odeio-te. Odeio-te porque não posso também dar esmola e porque me curvei a ti.
Toda a vida tu me fizeste bem, socorreste-me, agasalhaste-me. Um dia eu mau
como sou estou por cima. Então eu havia de perder a ocasião de me vingar de
tudo o que tu me fizeste? Chegou o meu dia. Agora, meu velho, eu sou maior, ouves?
Eu dobrei-me e tu socorreste-me, mas eu dobrei-me. Eu era um faminto e tu
sentaste-me à tua mesa, mas eu dobrei-me. Tive fome tu encheste-me, tive frio
tu agasalhaste-me. Irritante Tu, sempre Tu. E eu não podia vingar-me, mas agora
chegou a minha vez. Acredita que todos aqueles a quem fazemos bem nutrem lá
dentro a secreta esperança de um dia nos correrem a pontapé. Logo no primeiro
dia em que não temam desconjuntar a bota quando o fizerem, percebes? Escutaste?
Vem, se te sentes com forças. Demais és pobre. Então para ti a vida é tudo isto
e tudo o mais que tu tiveres coragem de inventar. O pobre será odioso até ao
seu parente mais chegado, que não merece carinhos quem não tem para
caldo, ouves? Tu virás e triunfarás. Tu serás mau e cínico e traidor. A
Vida? Seria loucura, na verdade, conservarmos alguns sentimentos compassivos
quando vivemos em semelhantes cavernas. A Vida é uma canalhice, uma farsa, uma
luta brutal, como diz Tourgueneff.
Carta
II
Foi
em Dostoiewsky que eu encontrei um dia esta frase: no fundo de cada um dos nossos
contemporâneos residem latentes os instintos de um carrasco! Não tens tu
encontrado, ó caricato, nas tuas horas de angústia, somente semblantes frios,
corações empedernidos e ouvidos cerrados? Quantas vezes perguntaste onde
estavam a Bondade humana, a Justiça humana? Quem te respondeu? Inútil pergunta.
Ninguém. Deus? Onde estava Deus? Deus não é deste mundo! E cada dia que
passa me convenço mais que nele só canalhas existem. Quem sou eu? Um canalha.
Quem és tu? Um canalha. Todos nós disfarçamos os piores instintos. Inútil
mascarada, se todos nos conhecemos bem. Tenho ouvido mais juras sem fé do que
de minutos tem um século. Tenho visto mais traições, mais egoísmos e mais
crimes que de mortos tem a eternidade ou de beijos tem levado o corpo de uma
prostituta que envelheceu no ofício. Filhas do homem, mães do homem, foi para
ele que todas essas mulheres se prostituíram; que elas dançam cancans infames e sofrem abandalhamentos
sem nome. O seu corpo, onde todos bolsam o seu quinhão de infâmia, é como os
mármores divinos dos museus, toda a gente lá vai pousar o olhar. Tem alguma
coisa de uma sentina ou de um confessionário. Elas é que sabem por quanto se
compra um riso. Quanto império, quanta vontade não é precisa para no meio de
uma carícia não cuspirem à cara de um canalha. Filhinho, filhinho..., e aquele
pedaço de belo lixo rebusca frases, prepara gozos requentados, pedidos sem
cerimónia como se eu lhes arremessasse à cara uma baforada de fumo de cigarro ou
lhes salpicasse o rosto com o meu hálito cheio de lama. Elas ali são minhas,
muito minhas. Paguei-as à hora como a corrida dos cocheiros». In
Albino Forjaz Sampaio, Palavras Cínicas, 1905, prefácio de Fred Teixeira,
Wikipédia, 2011, Editora Guerra e Paz, ISBN 978-989-702-000-1.
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