segunda-feira, 28 de março de 2016

O Mar e o Marão. Conferência-Manifesto. António Cândido Franco. «… o campo era todo cheio de gente (…) E com estas coisas que viam, uns chorando, outros departindo, faziam tamanho alvoroço, que punham em turvação os governadores daquela partilha»

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O Mar e o Marão
«(…) Homens, mulheres, crianças e até velhos são feitos prisioneiros, num total, segundo o capítulo XXIV da Crónica, de 235 almas, sendo depois partilhados num campo, perto da cidade de Lagos e a tal destinado. É a partilha desta gente acusada de ser desenraizada dos seus locais próprios de existência, que inspira a Zurata algumas das descrições mais realistas e cruéis da sua crónica e por isso mesmo algumas das observações mais críticas e humanas que nela se podem encontrar. As mães são afastadas dos filhos, os maridos afastados das mulheres, as famílias desmembradas. Diz Zurara a dado passo: quem poderia acabar aquela partição sem mui grande trabalho? Que tanto que os tinham postos em uma parte, os filhos, que viam os padres na outra, alevantavam-se rijamente e iam-se para eles; as madres apertavam os outros filhos nos braços e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, por lhe não serem tirados! E assim trabalhosamente os acabaram de partir, porque além do trabalho que tinham com os cativos, o campo era todo cheio de gente (…) E com estas coisas que viam, uns chorando, outros departindo, faziam tamanho alvoroço, que punham em turvação os governadores daquela partilha.
Esta passagem, com todas as atenuantes que possa ter, e são decerto muitas tendo em atenção a época, constituirá sempre aos olhos do Futuro, e aos nossos próprios, uma irrefutável legenda das nossas imperfeições, das nódoas que mancham a nossa glória. E o infante Henrique, governador da Ordem de Cristo, que Zurara descreve em cima de um poderoso cavalo, acompanhado de suas gentes, repartindo suas mercês, não deixará nunca de constituir, na sua figura distante e silenciosa, o motor imóvel de toda esta acção, que se desenrola sob os seus olhos.
Se a circum-navegação da África, como depois a da América, constituiu para muitos navegadores um sentido íntimo de aventura, que em nada traiu o homem e a natureza antes revelou os lugares mais generosos da alma humana, ao revelar as terras mais afastadas, também ela, a circum-navegação da África, nos deu passos cruéis, como aquele que acabámos de referir, e que não foi decerto nenhuma excepção. E não podemos ser hoje indiferentes a esses passos, e esse seria o pior dos erros, pois eles funcionam, na sua realidade, como avisos. Mas a obscuridade que mancha a luminosidade deste ciclo tem ainda outra vertente não menos escura. Refiro-me à intolerância religiosa que, sobretudo a partir do reinado de João III, antes portanto de podemos dar por completo o ciclo do Mar, se torna a principal característica do nosso poder político e do nosso poder religioso». In António Cândido Franco, O Mar e o Marão. Conferência-Manifesto, Junho de 1989, IADE, Lisboa.

Cortesia de IADE/JDACT