segunda-feira, 28 de março de 2016

Diálogo com a Morte. Marie Hennezel. «… após a sua morte e por fidelidade à sua memória, fundei com Jean-Louis Terrangle a Associação Bernard Dutant; sida e renovação…»

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«(…) Bernard, lembro-me de quando foste hospitalizado no quinto piso, para fazeres a tua primeira toxografia. Estavas morto de medo. Tinhas a certeza de que ias morrer de um dia para o outro. Estavas tão angustiado que decidiste tomar a dianteira. Lembras-te? Engoliste o teu anel, depois um prego; tentaste até, atirar-te pela janela. Os olhos de Bernard fixam-me agora. Ouve-me e faz-me sinal para continuar. Dir-se-ia que deseja que lhe conte a sua história. Não querias continuar a viver, não conseguias projectar-te no futuro, não conseguias imaginar este lento caminhar para a morte. Além disso, sentias-te tão culpado! Falei-te demoradamente dessas travessias nocturnas, dessas travessias do deserto em que nos desesperamos porque não atinamos com o fim, porque não sabemos o que há para a frente. Mas eu disse-te também que atravessamos esses momentos terríveis, e que descobrimos então em nós forças insuspeitadas. Lembro-me de me teres dito: achas que sim? Eu ia para fora por uma semana e tive vontade, antes de te deixar, de te transmitir a força de acreditar nisso. Respondi-te: tenho a certeza, com tal firmeza que até me admirei. Passada uma semana, ao voltar ao hospital, deparei com o teu caro Tirou, ele disse-me que era um verdadeiro milagre: tudo entrara na ordem, e tu estavas em plena forma. Precipitei-me para o teu quarto. Estavas sentado na cama, com o rosto resplandecente, e abraçaste-me. Tenho vontade de viver, disseste-me, e eu respondi-te simplesmente, de tal modo me sentia comovida: tenho vontade de te ajudar.
Sabes, Bernard, és uma das pessoas que mais coisas me ensinaram. Vi-te viver e combater contra esta doença, vi como te transformavas. Mostraste-me que podemos olhar a nossa morte de frente e continuar a viver, dando sentido à vida. Lembro-me daquele dia em que, tendo eu partido um braço, me vieste buscar num táxi para me levares ao teu osteopata. Na sala de espera, perante o olhar pasmado de duas senhoras de certa idade, falaste-me dos teus desejos em relação ao futuro do teu corpo. As duas senhoras olhavam incrédulas para aquele homem de quarenta anos, algo emagrecido mas irradiando energia, a evocar tranquilamente a sua morte, e o local onde gostaria que as suas cinzas fossem dispersas, naquele recanto da Itália que ele ama, sob as oliveiras. Olhei-te. Respiravas vitalidade, nessa manhã, e falavas-me da morte como de uma coisa natural. Agradeci-te, Bernard, profunda e intimamente, por me tomares por testemunha de semelhante coisa. Compreendes, agora pus tudo em ordem, e penso que estou em paz com toda a gente, posso continuar a viver, ou morrer de um momento para o outro, estou pronto, foi o que me disseste. Há três meses. Longo caminho percorreste, em dezoito meses, desde o dia em que caíste no desespero por saberes que tinhas sida.
Tento, com amor, reconstituir todos os momentos da sua vida de que fui testemunha. Sinto que realizo uma obra sagrada: parece-me entretecer dois fios de ouro, o da sua vida tal como me surgiu e o da minha, perturbada pela dele nos últimos meses. Porque não convivemos impunemente com alguém acariciado pela morte e que, sabendo-o, vive tudo o que lhe acontece como um dom. No contacto com ele aprendi a agradecer cada instante. Estou agora a desenrolar aos seus pés de moribundo o tecido da nossa relação. Queria dizer-lhe tanta coisa, nestes derradeiros instantes, quanto ele contribuiu para me modificar (após a sua morte e por fidelidade à sua memória, fundei com Jean-Louis Terrangle a Associação Bernard Dutant; sida e renovação, cujo objectivo é o de ajudar todas as pessoas atingidas pelo HIV a encontrar em si próprias aforça para viver essa situação). Pela janela do seu quarto, que dá para a cidade universitária, chega a primeira claridade do dia. Do seu último dia. Bernard vai morrer às sete da tarde. Acaba de deixá-lo um amigo, uma amiga chega daí a alguns minutos. como tantos outros, parece que esperou por ficar só para entregar a alma!» In Marie Hennezel, Diálogo com a Morte, Editorial Notícias, colecção Ciência Aberta, Lisboa, 1997/2002, ISBN 972-460-793-3.

Cortesia de ENotícias/JDACT