Cortesia de wikipedia e jdact
Os Filhos da Luz. Baviera,
1787
«(…) O problema era que, quando se encontrava cara a cara com um
cadáver, os seus sentidos viam-se tão invadidos pelo cheiro de morte, pela
visão da morte e pelo toque da morte, que a fé numa vida duradoura era, talvez,
não aniquilada, mas ofuscada como o sol encoberto por um mar de nuvens cinzas e
algodoadas. E, justamente quando chegava a esse ponto, uma mistura de
repugnância e mal-estar, de repúdio e desagrado, apoderava-se dele,
provocando-lhe suor nas mãos e angústia no peito. De boa vontade ele ter-se-ia desligado
da investigação dos homicídios, mas semelhante graça não lhe foi concedida.
Koch sentia-se tão satisfeito com a sua maneira de trabalhar, uma faca de dois
gumes, sem dúvida, que não apenas se tinha transformado num ajudante
privilegiado para o seu trabalho de resolução, mas também, em algumas ocasiões,
insistia em que fosse encarregado de dar os primeiros passos. Exactamente por
causa disso, tinha agora que examinar aquele despojo sujo e carcomido que um
caçador infeliz tinha encontrado. O homem tinha chegado tremendo ao posto de
polícia e, num primeiro momento, os agentes que o viram pensaram que ele tinha
acabado de sofrer alguma desgraça. E, até certo ponto, era verdade. Enquanto
passava por terras que não eram suas, tinha encontrado um cadáver. Noutras
circunstâncias, o peso da lei teria caído sobre ele, acusando-o de caçar
furtivamente ou, pelo menos, de invasão de propriedade privada. Agora, no
entanto, aqueles detalhes estavam amenizados pela gravidade de um homicídio.
Bem, sucedera assim porque Koch tinha enviado Steiner para examinar o corpo e
ele tinha decidido que era uma perda de tempo atacar um pobre homem que caçava
lebres de forma ilegal, quando graças a ele se podia botar as mãos num delinquente
de muito maior envergadura. Koch nunca teria aprovado essa maneira de agir. Por
acaso devemos perdoar o transgressor menor porque existe outro maior?, teria
perguntado de forma retórica, para depois acrescentar indignado: de forma alguma,
Steiner, de forma alguma. Mas ele encarava isso de outra maneira, e agia de acordo
com isso. Agradeceu ao homem, disse-lhe num aparte discreto que não deveria dizer
a ninguém o que estava fazendo naquele território de caça e, acto contínuo, mandou-o
ir descansar em casa. Levantaram o cadáver na presença de um dos juízes mais
experientes de Ingolstadt, que pensava em se aposentar em menos de um ano, mas,
no momento, insistia em se manter no activo. Coisa ruim, disse quando passou os
olhos sobre o morto. Alimentaram-se do rapaz. Não era nenhum exagero. A pancada
que lhe tinham aplicado na cabeça e que, quase com certeza, tinha ocasionado a
sua morte não era nada do outro mundo. Tratava-se do típico traumatismo que
deixa claro e manifesto como é fácil obrigar um pobre infeliz a cruzar o umbral
que separa a vida da morte. Até aí, tudo estava dentro dos limites da
normalidade. O problema era quando se examinava o restante do corpo. O pescoço,
o peito e o rosto apresentavam arranhões nada desprezíveis, mas o pior era a região
que se estendia pela frente do umbigo até o início das coxas e por trás em
torno do ânus. Os animais tinham-se fartado, não havia dúvida, mas tudo parecia
indicar que alguém se tinha antecipado a eles. Qual a sua opinião, herr
doktor?, perguntou o juiz quando o galeno terminou o exame do cadáver sob
os olhares atentos dos presentes. Pobre rapaz..., murmurou de forma quase
inaudível o médico. Ninguém podia negar a justeza daquelas palavras, mas, para
falar a verdade, não esclareciam muito a situação. Pobre rapaz, sim, mas porquê?
Poderia ser um pouco mais..., explícito?, atreveu-se a dizer Steiner. O médico
respirou fundo e, sem afastar os olhos do cadáver, começou a nutrir um cachimbo
de tubo longo. Era um bonito exemplar de artesanato bávaro, com um bocal de
madeira entalhada primorosamente e um fornilho alongado de porcelana. Devia ter-lhe
custado bem caro, pensou Steiner. Bitte, algum de vocês tem lume?,
perguntou o médico depois de ter a certeza de que o tabaco estava bem prensado
no interior do cachimbo. Foi o juiz quem atendeu à sua solicitação e,
imediatamente, o ambiente se encheu de uma fumaça azulada que desprendia um
cheiro agradável de uma substância que Steiner não conseguiu identificar, mas
que ele agradeceu porque encobria, pelo menos em parte, o fedor da morte. Eles mataram-no
de um só golpe. Isso é indubitável, mas..., interrompeu a explicação para dar
uma nova sugada no cachimbo, mas o mais terrível é que o crime veio acompanhado
de um comportamento..., bem, recuso-me até a qualificá-lo. Um pouco antes ou um
pouco depois da morte, a vítima foi sodomizada. Desculpe?..., exclamou Steiner,
que não tinha certeza de ter escutado direito. Ele foi sodomizado, disse o
médico, com a mesma serenidade com que teria comentado que as nuvens anunciavam
chuva. Está querendo dizer..., começou a dizer Steiner, que não conseguia dar crédito
às palavras do galeno. Estou querendo dizer que o assassino cometeu com este infeliz
o pecado pelo qual Deus destruiu as cidades ímpias de Sodoma e Gomorra. Mas não
foi uma acção voluntária. Violentaram o rapaz. O alargamento do ânus não deixa
margem a dúvidas. Desde já, espero que o tenham matado antes. E as feridas no
púbis?, perguntou Steiner. Algumas podem ter sido ocasionadas por animais, mas
tenho a impressão de que já encontraram o trabalho bem adiantado. O assassino
fartou-se com as partes do rapaz. O senhor acha que pode ter sido uma vingança
por ele se ter recusado a se entregar?, perguntou Steiner. O doutor encolheu os
ombros, deu uma nova sugada no cachimbo e lançou no ar uma baforada de fumaça
azulada. Desta vez não foi uma sequência de gestos prazerosos, mas um
encadeamento de movimentos cansados, quase dolorosos. Talvez..., talvez...,
disse. Em todo o caso, depois de o matar, parece que se deleitou em profanar o
cadáver. Um silêncio incómodo desceu sobre o aposento. Dava a impressão de que nenhum
dos presentes queria estar ali, de que teriam dado alguma coisa valiosa para se
poderem livrar da obrigação de examinar o cadáver. Sentiam-se surpresos diante
de uma manifestação da maldade humana que ultrapassava aquilo a que estavam acostumados
a presenciar no seu papel de médico, juiz ou policial». In César Vidal, O Crime dos
Illuminati, 1958, tradução de António Borges, Relume Dumará, Ediouro
Publicações S.A., 2006, ISBN 857-316-6491-3.
Cortesia de RDumará/JDACT