segunda-feira, 7 de março de 2016

Os Venenos da Coroa. Maurice Druon. «O perigo oferece a melhor ocasião para nos tornarmos íntimos dos grandes, dizia a si mesmo. Se acabarmos por nos afundar e por morrer todos, não será desfazermo-nos em lamentações…»

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A França esperava uma rainha. Adeus a Nápoles
«(…) Agarrado a um cabo, com o crucifixo na mão, ouvia confissões apressadas e distribuía absolvições. A agulha de marear já não servia para nada, uma vez que era sacudida em todas as direcções pela pouca água que restava na caixa onde flutuava. O capitão, um latino ardente, rasgara as vestes até ao ventre em sinal de desolação, e todos o ouviam gritar, entre duas ordens: Senhor, ajuda-me! No entanto, parecia conhecer bem o ofício e procurava evitar o pior. Mandara trazer os remos, tão longos e pesados que eram precisos sete homens para os manobrar. Para segurar a cana do leme colocara doze marinheiros, seis de cada lado. Contudo, num momento de mau humor, no início da borrasca, o conde de Bouville, chegara a gritar-lhe: ei, mestre marinheiro! É assim que sacodis a princesa prometida ao meu rei? O vosso navio deve estar mal carregado para rebolarmos desta maneira, e vós não sabeis navegar! Se não vos apressais a mostrar que sabeis fazer melhor, à chegada apresentarei queixa às autoridades do vosso ofício e vós ireis aprender navegação nos bancos de uma galera... Mas a sua cólera depressa se desvanecera. O antigo camareiro-mor acabara por vomitar sobre os tapetes do Oriente, imitando nisso, de resto, quase toda a escolta. De rosto pálido, e ensopado da ponta dos cabelos até aos dedos dos pés, o pobre gordo, convencido de estar prestes a entregar a alma ao Criador de cada vez que uma vaga levantava o navio, gemia entre dois soluços que não voltaria a ver a família e que não pecara assim tanto na sua vida que merecesse sofrer daquela maneira.
Guccio, pelo contrário, mostrava-se de uma valentia extraordinária. Com a cabeça lúcida e os pés ágeis, tomara a seu cargo a tarefa de acomodar melhor as suas arcas, especialmente as que transportavam dinheiro. Nos momentos de relativa acalmia, corria a levar um copo de água à princesa ou então espalhava essências à volta dela, para disfarçar com isso o mau cheiro resultante da indisposição dos companheiros de viagem. Há um certo tipo de homens, sobretudo de jovens, que se comportam instintivamente de maneira a justificar o que esperam deles. São olhados com certo desprezo! Há grande probabilidade de que se comportem de forma desprezível? Pelo contrário, pressentem à sua volta a estima e a confiança dos demais? Nesse caso ultrapassam-se a si mesmos e, mesmo que morram de medo, como todos os outros, comportam-se como heróis. Guccio Baglioni era um destes homens. Uma vez que dona Clemência tinha uma maneira de tratar as pessoas, pobres ou ricas, grandes senhores ou plebeus, que as honrava a todas, e além disso testemunhava uma cortesia especial em relação a este homem, que fora um pouco o mensageiro da sua felicidade, junto dela Guccio tornava-se um cavalheiro e comportava-se de forma mais orgulhosa que qualquer um dos fidalgos. Toscano, e por isso capaz de qualquer proeza para brilhar aos olhos de uma mulher, não deixava por isso de ser banqueiro de alma e coração, e jogava com o destino como outros jogam com os câmbios.
O perigo oferece a melhor ocasião para nos tornarmos íntimos dos grandes, dizia a si mesmo. Se acabarmos por nos afundar e por morrer todos, não será desfazermo-nos em lamentações, como Bouville, que mudará a nossa sorte, mas, se escaparmos, terei conquistado a estima da rainha de França. Ser capaz de pensar desta maneira num momento de perigo já era uma prova de coragem, mas nesse Verão, Guccio sentia-se invencível: amava e sabia-se amado. Assegurava assim à princesa, contra todas as indicações, que o tempo já começara a levantar e, quando o navio gemia com mais desespero, que se tratava da mais sólida das embarcações, e contava como escapara ileso de uma tempestade mais impressionante sobre o canal da Mancha. Fui levar à rainha Isabel uma mensagem do conde de Artois… A princesa Clemência comportava-se igualmente de forma exemplar. Refugiada no paraíso (paradis, compartimento de nível constante), uma imensa câmara preparada para os hóspedes reais no castelo de popa, exortava à calma as suas damas de companhia, que, como um rebanho de borreguinhas assustadas, baliam e se agarravam às paredes do navio a cada vaga violenta. Clemência não teve uma única palavra para se lamentar quando lhe anunciaram que as suas arcas de jóias e vestidos tinham sido lançadas pela borda fora.
Teria dado o dobro, disse apenas, para que os nossos bravos marinheiros não tivessem sido atingidos pelo mastro. Sentia-se menos impressionada pela tempestade que pelo sinal que aí lia. Ora aí está. Este casamento era bom de mais para mim, pensava. Fui exageradamente dominada pela alegria e pequei por orgulho. Deus vai fazer-me naufragar porque não mereço ser rainha. Na quinta manhã da abominável travessia, a princesa, numa altura em que o vento parecia ter acalmado um pouco, embora nem por isso o mar se mostrasse mais tranquilo, observou o gordo Bouville, descalço, vestido apenas com uma túnica, com os cabelos em desalinho, de joelhos, braços em cruz, na ponte do navio. Que fazeis aí, senhor?, gritou-lhe. Faço como o nosso rei São Luís, senhora, quando por pouco não naufragou ao largo de Chipre. Prometeu levar uma naveta de cinco marcos de prata a São Nicolau de Varengeville, se Deus o levasse de volta a França. Foi o senhor de Joinville que o contou». In Maurice Druon, Os Reis Malditos, Os Venenos da Coroa, 1956, tradução de Helena Ramos, colecção Cavalo de Tróia, Gótica, 2006, ISBN 972-792-165-5.

Cortesia de Gótica/JDACT